26 de out. de 2008

Coca-Cola: bebida com origens latino-americana e afro


Não nos damos conta de uma série de coisas. Já falei, por exemplo, que há em Santa Cruz do Sul gente que despreza os índios, dizendo que “o lugar deles não é aqui”, propondo que sejam “varridos” do centro da cidade. Mas ao mesmo tempo defende o fumo com unhas e dentes, porque tornou o município um pólo e ainda sustenta sua economia. Pois o tabaco – assim como o milho, o aipim, o amendoim, etc. – são plantas desenvolvidas e milenarmente cultivadas, beneficiadas e consumidas por indígenas, incluindo os que aqui habitaram e cujos descendentes ainda habitam quase invisíveis em alguns rincões e periferias da região, num triste sintoma do desprezo e exclusão sócial.

O próprio chimarrão, símbolo do gauchismo, vastamente consumido, é um chá típico de índios sul-americanos que viviam sem fronteiras entre Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. Entretanto, aos goles da infusão de erva-mate, a Ilex paraguariensis, continuamos chamando-os de sujos e vagabundos...

Mas há uma outra bebida de fama ainda maior, internacional, que fez surgir uma corporação financeira poderosa e um ícone da cultural globalizada dominada pelo “Tio Sam”. A Coca-Cola, criada em 1886 pelo farmacêutico John Pemberton, é hoje um refrigerante que junta e aproveita-se de propriedades (medicinais e de sabor) de duas plantas tradicionalmente usadas por povos ancestrais, que jamais são lembrados enquanto sorvemos a beberragem. Muito menos, essa gente e seus descendentes, é lembrada na hora da empresa repartir os lucros astronômicos derivados do vasto consumo do composto.

A planta coca vem de regiões de índios da América Latina, e a Cola, de negros do nordeste da África. Regiões hoje extremamente pobres, alvo de histórica exploração político-econômica por parte de europeus e destruição de modos de vida não-capitalistas.

Coca deriva do nome quíchua “kuka”. Segundo informações da Wikipédia, “é uma planta da família Erythroxylaceae, seu nome científico é Erythroxylum Coca. Nativa da Bolívia e do Peru, tem porte arbustivo, suas flores são amarelo-alvacentas, pequenas e aromáticas, solitárias ou reunidas em cimeiras, os frutos drupáceos oblongos, vermelhos, e cujas folhas e casca encerram 14 alcalóides.” Um deles se popularizou através do mercado ilegal: a cocaína. Outros, pelo refresco Coca-Cola, originalmente vendida como remédio. “As propriedades analgésicas da coca foram descobertas pelos incas e até hoje as suas folhas são comumente mascadas na região dos Andes.”

Cola é a planta que produz o fruto conhecido como noz de cola, também chamada de abajá, café-do-sudão, cola, mukezu, obi, e oribi. Também conforme a Wikipédia, há várias espécies do gênero Cole da subfamília Sterculioideae. “Possuindo um gosto amargo e grande quantidade de cafeína, a noz é usada por muitas culturas do oeste africano, tanto individualmente quanto em grupo”. Podendo ter uso ritualístico, “tem ação estimulante, regularizadora da circulação. É também antidiarréica e usada nos casos de anemia, convalescença de doenças graves, problemas estomacais e certas enxaquecas e sobretudo nas perturbações funcionais do coração.” Essas suas propriedades conferiram alto valor à cola e à derivada bebida refrescante tradicional das regiões africanas de extremo calor, após espalhando-se pelo mundo. “O uso difundiu-se na região norte da América Latina através dos escravos negros que mascavam amêndoas de cola para suportar trabalhos penosos.” Hoje os “refris de cola” são disseminados e popularíssimos. Não há, praticamente, nenhum lugar do planeta que não ostente alguma placa do tipo “Beba Coca-Cola”...

Sem retirar o mérito do trabalho de quem “misturou” a coca e a cola, acrescentou açúcar e outras substâncias, gaseificou e começou a vender o líquido gelado engarrafado, podíamos ao menos ter em mente que tal sucesso jamais seria obtido sem ter havido trabalhos e descobertas – sobre as propriedades, variedades, formas de extração, cultivos, beneficiamentos –, hábitos e formas de uso muito anteriores, junto a povos nativos sul-americanos (coca) e africanos (cola). Ou seja, anteriores a toda riqueza dos “donos” da fórmula da Coca-Cola, há índios e negros esmagados por uma perversa concentração de poder, que, para não repartir e continuar sugando e dominando, desvia, fantasia e faz esquecer.

Bem mais poloneses do que alemães: a primeira leva de imigrantes em Santa Cruz



Dias atrás, revendo um artigo sobre a história santa-cruzense, que está disponível no site da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul, me voltou a chamar a atenção aquilo que o estudioso das questões da etnicidade, Cláudio Ferreira, vem argumentando, ou seja, que, a rigor, os primeiros imigrantes em nossa Santa Cruz do Sul simplesmente NÃO ERAM de nacionalidade alemã, já que, como país, a Alemanha não existia até 1871. Sequer se pode alegar que, “sim, eram alemães os primevos, porque houve, posteriormente, uma unificação de territórios, dando-lhes um pertencimento nacional único”.

Vejamos o caso dos colonos da primeira leva, de 1849, "os pioneiros" – homenageados com o nome em bronze no “Monumento ao Imigrante Alemão”, ali no entroncamento das ruas Marechal Floriano e Galvão Costa. Tirando um da Prússia, hoje Alemanha, os demais assentados seriam da Silésia [reprodução ao lado de mapa antigo - divulgação], hoje Polônia. Portanto, considerando os países em sua conformação atual, seriam apenas 1 alemão e 11 poloneses...

É dito literalmente no texto que mencionei: “[Os] primeiros 12 imigrantes foram os seguintes: Augusto Wuttke (42 anos), católico, moleiro, sua mulher Francisca (33) e os filhos Guilherme (14), Joana Maria (13), Lucas (6) e Juliana (4); Frederico Tietze (28), evangélico, moleiro, e sua irmã Carlota (30); Augusto Raffler (26), católico, lavrador; Gottlieb Pohl (29), evangélico, lavrador; Augusto Arnold (43), evangélico, lavrador; e Augusto Mandler (30), evangélico, lavrador. Com exceção deste último, que era prussiano, todos os demais eram naturais da Silésia, território hoje pertencente à Polônia.”

Independentemente dos territórios específicos de onde essas milhares de pessoas tenham provindo, tratam-se de regiões da Europa que sofreram ao longo do tempo diversas alterações de denominação, domínio e sistema político, vínculo pátrio e conformações étnicas ditadas por migrações, invasões, ocupações, expurgos, guerras, ciclos econômicos etc. Imagine-se a enorme e constante fusão de culturas, línguas, hábitos, religiões e outros elementos dessas gentes bem antes de serem assentados no Brasil.

A região da Silésia é exemplo disso. Com provável origem na sedentarização de antiguíssimas tribos eslavas, até povos mongóis lá estiveram em 1241, sendo que, a atual conformação político-geográfica e composição étnico-cultural da região, só começou a se estabilizar após a 2ª Guerra Mundial, ainda sofrendo alterações com a dissolução e fim do domínio da União Soviética na vizinhança, há menos de duas décadas.

Reflita-se: aqui em Santa Cruz, estes grupos já diversos e, cada qual, formados numa diversidade anterior, diversificaram-se ainda mais em casamentos e convívios interétnicos com outros imigrantes, migrantes e nativos. Considere-se – já de saída – que, desembarcados no porto do Jacuí, abrigados pela municipalidade rio-pardense e conduzidos por tropeiros locais, esses primeiros grupos de colonizadores da Europa Central chegavam a um povoado já estabelecido, o Faxinal do João Faria, núcleo original da cidade de Santa Cruz. Conforme o artigo, “Na área do Faxinal, havia então quatro moradores [com provável parentela, agregados e escravos]: Gregório Silveira, José Rodrigues de Almeida, o vendeiro Agostinho Antônio de Barros, além de descendentes do sesmeiro João Faria da Rosa”. O neto deste antigo proprietário, de onde derivava a denominação do Faxinal, “cuja residência se localizava na região alta da atual rua Marechal Floriano, [foi] quem [abrigou e] transportou [os colonos] até o local dos seus lotes, na Picada do Abel [hoje Linha Santa Cruz]”. Somem-se, ainda, os caboclos, aquilombados e índios que estavam e circulavam pela região, conforme os registros historiográficos – aliás, pouco considerados, dando lugar à reprodução de mitologias obtusas.

Quer dizer, há – desde os primeiros momentos – contatos e convivências com grupos e indivíduos lusos, negros, mestiços já fixados em Santa Cruz e pela região, formatando paulatinamente nessas comunidades uma etnicidade peculiar, que talvez a expressão “teuto-brasileira-santa-cruzense” seja a menos problemática para identificar. Infelizmente, tais características próprias, singulares são constantemente pervertidas pela “importação de tradições” de um folclorismo da Alemanha contemporânea. Isso é notável em eventos como a Oktoberfest. Ao invés de uma comemoração da teuto-brasilidade local, temos a tentativa de um cultivo de uma germanidade postiça, caricata, comercial, que, como disse o professor Flávio Koth, pouco tem a ver com os lugares de origens dos imigrantes. E ainda menos com a cultura híbrida desenvolvida entre gentes vindas de muitos lugares que se encontraram pelas picadas e povoados que constituem hoje Santa Cruz do Sul.

Que meninas santa-cruzenses, caras-pálidas? - sobre a escolha das "soberanas da Oktoberfest"


Um jornal da cidade, em sua edição de 18 de abril passado, ou seja, na abertura de uma nota sobre a escolha das rainhas e princesas da edição 2008 da Oktoberfest – dentro de uma das páginas mais lidas da publicação diária – diz o seguinte:

“O sonho de se tornar soberana da Oktoberfest bate à porta das meninas santa-cruzenses.” A matéria seguia, detalhando e orientando as interessadas a se inscrever até às 11h30min daquela manhã. A escolha seria no já transcorrido 4 de maio, em evento especialíssimo.

De imediato me perguntei, parodiando o índio da história de Zorro [ilustração acima - divulgação]: Mas que meninas santa-cruzenses vocês estão falando, caras-pálidas? Quem são essas meninas? Todas? De verdade? Obviamente que não. Fora outras exigências gerais, de patrocínio, por exemplo, ou de padrões de beleza bem demarcados – altura e peso, entre outros – há uma barreira racial evidente.

Como reagiriam os organizadores a uma inscrição de uma candidata negra? Seria aceita com tranqüilidade, naturalidade? Não haveria celeuma algum? Antes disso – e o que me deixa doente: alguma moça afro-descendente (ou de traços indígenas ou acaboclada, como há tantas pelas nossas vilas da periferia e interior rural) se sentiria encorajada a pensar em se inscrever no concurso? Quem a apoiaria? Nem os pais teriam forças para tal....

Repito: o fato é que esse “sonho das meninas santa-cruzenses” não é para todas, não. Às negras santa-cruzense, desde pequeninas, lhes será dito que a maior festa do município, a comemoração por excelência da comunidade, que veio a substituir a Fenaf a partir de 1984 – num processo que o historiador Eric Hobsbawm poderia referir-se como exemplo de “invenção da tradição” –, que recebe consideráveis recursos da prefeitura e de outros cofres públicos, para essas meninas de pele escura e traços tipicamente afros (ou não-caucasianos), tal sonho de ser rainha ou princesa da festa não existe ou não sobrevive; é vetado desde sempre.

Mesmo que consideremos a frivolidade e fugacidade de tais papéis – o de “soberanas” de uma festa transposta artificiosamente de Munique* –, alguém já parou para pensar que tipo de dor e resignação essa impossibilidade, essa discriminação provoca (tanto mais porque está implícita e escamoteada)? Que tipo de sentimento se acumula, se reprime, se esconde e se condensa na cabeça dessas mulheres e, de modo geral, na subjetividade das milhares de pessoas negras que residem e, em considerável parte, têm seus antepassados ligados ao município, mesmo antes do início da introdução de colonos germânicos na região do Faxinal do João Faria, povoado que deu origem a cidade de Santa Cruz**?

Muitos dirão: “Mas há o Baile da Escolha da Mais Bela Negra!” Justamente o baile e outros concursos similares – e bem menos importantes em termos oficiais e de investimento de recursos públicos – são reações, mas que explicitam e mantêm o apartheid; institucionalizam o “cada macaco no seu galho”, enfim, colaboram para este racismo à brasileira ainda não vencido.


*Como já citei várias vezes [inclusive em outros textos deste blog], o santa-cruzense Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília, com pós-doutorado nas universidades de Heidelberg, Konstaz, Bonn e Berlim escreveu o um artigo muito interessante – Imigração e Colonização: Utopia e Identidade –, publicado na revista do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Unisc (Redes, vol. 6, número especial, pág. 105 a 127, maio de 2001). Ele anotou o seguinte: “A maioria dos teuto-brasileiros descende de povos que vem sendo inexoravelmente extintos na Europa – pomeranos, silésios, sudetos, boêmios, lorenos, alsacianos alemães (...). No Brasil, essa consciência histórica tem sido sistematicamente reprimida, tanto pelo Estado, a escola e a Igreja, quanto pelos próprios teuto-brasileiros. Estes são levados, então, a se identificarem com a cultura dominante mais próxima, como o tipo gaúcho do sul do Jacuí, e ficam dançando fantasiados nos CTGs, usando bombacha e trovando, ou então se identificam com o estereótipo dominante do alemão, o bávaro, o tipo alemão mais reacionário, e daí celebram a Oktoberfest, usando calça curta de couro e erguendo canecões de cerveja, embora nenhum descenda de bávaros, pois não houve quase imigração de Bayern para o Brasil. Assumem como própria uma identidade e uma história alheia (...). (...) Os brasileiros descendentes de imigrantes perderam a língua, a dança, a música, o teatro, os valores, a cultura, a história, a identidade dos antepassados. Não lhes foi permitido acrescentar, praticamente, nenhuma palavra à língua falada no Brasil, nenhuma contribuição cultural relevante. No máximo, com a pax romana instituída, foi permitido aos teuto-brasileiros cultivarem a sua “Oktoberfest”, uma festa típica de Munique, de uma cultura que nada tem a ver com a de seus antepassados: eles assumem como sua identidade o estereótipo vigente e, vestidos de Lederhosen, gritando alto e levantando canecões de Bier, ostentam, em sua alienação, a caricatura de si mesmos, a vulgarização que os mostra e demonstra como vulgares. Os revolucionários de outrora se revolvem em suas tumbas, mordendo a grama pelas raízes para não gritarem o fracasso de suas esperanças, a inutilidade dos seus esforços. Como eles não têm mais cordas vocais, também nada mais se ouve, tudo se torna apenas fantasia. O vento que sopra as sombras sobre suas tumbas parece apenas aplaudir o ridículo, o fracasso que vieram a ser os seus esforços ideais.”

**Foi na sesmaria de João Faria Rosa – numa região de aldeias e circulação de vários grupos indígenas –, onde surgiu o Faxinal, a partir do assentamento de parentes, agregados e escravos desse proprietário (além de outros), dando origem mais tarde a cidade de Santa Cruz. Décadas depois, em meados do século XIX, é que se iniciaram os assentamentos de imigrantes organizados pelo governo provincial (RS) e, depois, pela iniciativa privada – todos recebendo subsídios diretos e indiretos do poder público. Milhares de pessoas, de diversas partes da Europa (ressalatndo que, em 1849, a Alemanha, como país, não existia), mas também de outros lugares – até mesmo levas de colonos do Ceará foram assentadas na região –, compuseram inúmeras comunidades, onde a diversidade étnica era bastante considerável, mas sofreu uma “homogeneização ideológica”, fruto de vários fatores, entre eles a deliberada construção de uma “identidade única” (referendados no estrangeiro) a essas localidades. Mesmo assim, povos categorizados como germânicos são os mais expressivos, mas, ao se “cruzarem” com a miríade de gentes já aqui na região e outros emigrados e seus descendentes, desenvolveram uma cultura própria, descaracterizada – numa “comemoração” como a Oktober – pela “importação” de elementos culturais descontextualizados (um exemplo: as referências à bandeira da atual Alemanha utilizadas em profusão na festa pouco têm a ver com as regiões donde partiram os primeiros emigrados germânicos para cá e com características dos cruzamentos sócio-culturais que estabeleceram uma teuto-brasilidade na região).

Na carona de Jack Kerouac


Depois de mais de 20 anos, volto a "visitar" esse autor, considerado o principal da Geração Beat - movimento contracultural tendo a literatura o seu principal veículo, iniciando-se nos Estado Unidos e influente até hoje no mundo todo. Dito também o criador da "prosa espontânea", “imitando o jazz”, tendo redigido sua mais conhecida obra, On the Road [foto acima - divulgação - uma das edições nos EUA] de, em três semanas quase ininterruptamente (reza a lenda que usou um rolo de telex para não precisar trocar as folhas na máquina). Li o Pé na Estrada – conforme foi traduzido o título para a edição brasileira – numa espécie de corrente nos meados dos anos 80; o livro ia passando de amigo para amigo e empolgando a nós todos.

O grande propagandista de Kerouac, e demais do “bando betnick” – Ginsberg, Burroughs, Cassady, Corso, etc. –, era justamente o jovem tradutor do On the Road, Eduardo “Peninha” Bueno. Verborrágico, apaixonado, inteligentíssimo, polêmico, Bueno usava o programa Pra Começo de Conversa, da Televisão Educativa gaúcha (TVE-RS), como seu púlpito. E nós nos contagiamos daquela ânsia e energia “beatífica” e só não pegamos as mochilas e “saímos por aí” porque nossa caretice e encagaçamento eram (são?) ainda demasiados. Os efeitos das leituras e conversalhadas sem fim se deram de forma homeopática, digamos assim – e ainda estão em ação nas posturas existenciais de muitos desses meus velhos companheiros, jamais sendo bois na boiada.

Coincidentemente (ou não!), no mesmo momento que retomei as leituras de Kerouac, fiquei sabendo (eu poderia ter calculado) que a “bíblia” está completando 50 anos da primeira publicação nos EUA, em 1957. Considero-o um clássico da literatura – desses que são (até para quem não os leu) marcos ou "divisores de água", influenciando (além de ser um resultado de acontecimentos) direta e indiretamente os comportamentos, as artes, a própria sociedade. Um fenômeno sociológico, pode-se considerar sem muito exagero.

O diretor Walter Salles, do premiado Diário de Motocicleta, vai fazer um filme a partir do Pé na Estrada. Pela matéria que li em um jornal de São Paulo, soube que, antes do filme, Salles e um pequeno grupo saíram pelos EUA “seguindo pegadas” do Kerouac e conversando com os betniks sobreviventes, além de gente que foi influenciado pela “batida”, como Lou Reed e David Byrne. Disso sairá um documentário (prévio ao filme).

Outra coisa interessante dessa reportagem: “descobri” que o personagem Japhy Ryder, que é um dos protagonistas do romance Os Vagabundos Iluminados – tão bom ou melhor de que o Pé na Estrada – é um histórico ecologista norte-americano, também poeta e escritor versado em zen-budismo, Gary Snider. E aí está uma ligação direta desse pessoal com o ambientalismo e toda uma nova forma de encarar o planeta e a própria vida, fazendo emergir novos comportamentos. No campo da escrita, é um impacto estético, metodológico, de conteúdo e de influências para as quais muitos “literatos” empinam seus narizes, dão de ombros e, aí, resvalam ridiculamente na casca da banana.

Não é pouco o que significaram e significam esses “malucos-beleza”!

*Redigido em julho 2007.

Ainda o ovo da serpente num trem para Berlim em 1965


Outra faceta interessante do jornalista e escritor Fausto Wolff – para mim que gosto de estudar e refletir sobre a identidade étnica, em especial dos imigrantes alemães e negros aqui no Vale do Rio Pardo e, mais especificamente ainda, nas bandas de Santa Cruz do Sul – é a abordagem desse autor sobre esses aspectos de conformação histórica e social que tanto nos afetam e implicam, mesmo que sem nos darmos conta.

Gaúcho descendente de alemães emigrados para o Rio Grande do Sul, a família de Wolff estabeleceu-se primeiro no interior de Santo Ângelo, como indicam as suas obras e referências biográficas alheias. Com todo o “estereótipo ariano” (loiro, alto, esbelto, etc.), incluindo o nome e sobrenome, Faustino Wolffenbüttel (donde deriva o pseudônimo Fausto Wolff), viveu as realidades da colônia rural de imigrantes teutônicos no Rio Grande do Sul; a de uma pequena cidade do Estado gaúcho, a Santo Ângelo dos anos de 1940; a de uma Porto Alegre dos 50, bairros proletários, inclusive; a de um boêmio Rio de Janeiro dos 60 e, por fim, do cosmopolitismo internacional na Dinamarca e Itália dos anos 70, quando a ditadura militar engrossou no Brasil e o jovem repórter, como já notório contestador, teve que se auto-exilar para não ser preso e até morto pela aparelhagem repressiva que se instalou no Brasil até 1985.

Conforme o conto O travesti, publicado no livro O nome de Deus: 10 histórias (Bertrand Brasil, 1999), sabe-se que Wolff conhece a Alemanha por volta de 1965, através de uma estadia naquele país – passando por Munique, Colônia, Bonn, Stuttgart, Hamburgo e Berlim –, a convite de uma organização que lhe estava apresentando o sistema televiso alemão, que, à época, totalmente estatizado. O jornalista, que havia trabalhado na revista O Cruzeiro e outras publicações cariocas e na imprensa porto-alegrense, onde iniciou sua carreira, acaba não tendo as melhores impressões sobre o povo alemão na ocasião.

A certa altura, o protagonista da história, que vem a ser, ao que tudo indica, conforme estou aludindo, o próprio Wolff, faz um desabafo: “A verdade é que eu estava saturado da Alemanha e dos alemães: da pontualidade, da falta de humor, do mal disfarçado orgulho, da mal disfarçada arrogância, dos assuntos que não podiam ser discutidos, mas que estavam enganchados em qualquer pedaço de ar”.

Que assuntos tabus eram esses? Veremos...

Wolff também revela logo adiante no texto que, em provável razão do seu perfil étnico, em desacordo com a mistificação de “país mestiço de lusos, negros e índios”, tinha um sentimento de “sentir-se estrangeiro no Brasil” – “mas, certamente, na Alemanha me sentia mais estrangeiro ainda”, conclui. Quer dizer, Wolff ou/e seu personagem não consegue(m) observar e sentir essa “identidade comum e fraternal” que muitos tentam estabelecer entre descendentes de emigrados germânicos na América do Sul e a população alemã contemporânea, como se fizessem parte de uma supraterritorial “pátria comum”.

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O ponto crítico da viagem narrada por Fausto Wolf através do conto O travesti é o acontecido no trem que seguia a Berlim, quando, por desatenção e cansaço, o protagonista dessa história (um conto de evidente conteúdo autobiográfico), entra em uma cabine da primeira classe, tendo um bilhete para a segunda. Percebido o equívoco pelo fiscal do comboio, instala-se um histérico tribunal de acusações entre os passageiros que também estavam naquela cabine. “Todos berravam ao mesmo tempo. Agiam como se eu houvesse cometido um crime horrendo”. Não suportando mais a cena, Wolff dá um passo para trás, bate os calcanhares, estende a mão aberta e grita “Arbeit Macht Frei!” – “o moto irônico e cruel que os nazistas haviam colocado na entrada de todos campos de concentração”, significando “O Trabalho Liberta”. A teatralidade faz seu efeito e de imediato as pessoas se calam, talvez percebendo a sua indignada ironia, lembrando àqueles súbitos revelados celerados a soberba, “a prepotência alemã no tempo do III Reich”.

O assunto que não podia ser discutido tinha tudo a ver com esta questão envolvendo a Segunda Guerra Mundial. Wolff observa intrigado os alemães com mais de cinqüenta anos que passam a sua frente (depois de ter dado uma desastrosa entrevista a um programa cultural, onde desagradou “judeus alemães, o entrevistador” e seu cicerone na ocasião, declarando “que deveriam ter instalado o Estado de Israel no Vale do Ruhr e não na Palestina”), perguntando-se: “Mas será possível que ninguém sabia de nada?” Das câmaras de gás, do sádico assassinato de crianças e velhos, das experiências mortais com cobaias humanas, etc?

Passaram-se duas décadas desde o fim do terror inominável da “Era Hitler”, mas a Alemanha (ou parcela da sua população), naqueles meados de 1960, parecia ter recuperado – ou mantido? (ao menos em parte) – uma tacanhice que embasou um conflito estúpido onde o sangue de milhões de seres humanos não parecia ter sido suficiente para deixar ao largo idéias cretinas de superioridade.


*No romance À mão esquerda, Wolff, através, também, de personagens e situações autobiográficas – como no conto O travesti, onde a abordagem é bem mais rápida, embora muito interessante –, traça um painel onde se inserem as questões dos teuto-brasileiros – como ele mesmo se reconhece –, retrocedendo num exercício ficcional-histórico à Alemanha medieval, passando pela colonização germânica no Rio Grande do Sul a partir de 1824, até o Brasil e o mundo contemporâneos, centrado nos anos de 1950 até meados de 1990.

**Este texto foi redigido em 2006. Infelizmente, Fausto Wolff morreu há poucas semanas atrás. Perdemos um escritor, pensador e jornalista, enfim, um intelectual brasileiro dos melhores e mais engajados socialmente.
***Na ilustração acima, a atriz Liv Ulmann, no filme O OVO DA SERPENTE (The Serpent´s Egg), dirigido por Ingmar Bergman, EUA/Alemanha, 1978. 120 min. "Em 1923, em Berlim, pouco antes da tomada do poder pelos nazistas, um trapezista americano e sua cunhada viúva sobrevivem com dificuldade à violenta recessão econômica. Sem compreender as transformações político-sociais em curso, acabam aceitando empregos em uma clínica que faz experiências com seres humanos clandestinamente." FONTE: http://www.memorial.sp.gov.br

Cinema, tabaco e ingratidão - sobre o filme O Novo Mundo, de Malick




Pela quantidade de filmes que a gente tem à disposição aqui nas salas de Santa Cruz do Sul, me considero um freqüentador pouco assíduo. Escolho alguns poucos e devo ir em média duas ou três vezes ao mês no máximo. No ano passado [2006], pela leitura de algumas resenhas – e não pelo cartaz que vi lá no shopping, que lembrava “mais um daqueles filmes da época do descobrimento da América” –, anotei na mente como “não perder”. Tratava-se de O novo mundo (EUA, 2005), do diretor Terrence Malick.

Fui então conferir e saí muito contente. Ficou só uma semana em cartaz e parece que o público foi diminuto. Por que será que isso aconteceu? Minha tese é que o filme era o que chamam “cine-arte” e propondo reflexões. E assim, em nossa “sociedade da futilidade", da frivolidade, o apelo de O novo mundo, mesmo não sendo um daqueles ininteligíveis "filme-cabeça", se perde na mediocridade dos gostos e capacidades limitada de apreciação.

A história anda lenta, com uma fotografia belíssima, feita com luminosidade natural do próprio ambiente. É uma adaptação do clássico conto Pocahontas [na foto - divulgação -, a atriz Q'Orianka Kilcher, que interpetra a lendária índia norte-americana] – mas muito mais denso do que a açucarada versão Disney. Os realizadores pesquisaram bastante. Até a linguagem dos índios – da fala, dos movimentos corporais, adereços, pinturas, etc. Os atores tiveram que apreender um idioma em extinção, o algonquin. O forte onde os primeiros ingleses fizeram sua base, no hoje estado de Virgínia, Estados Unidos, foi construído para as gravações com os meios mais rústicos possíveis, buscando reproduzir com o máximo de fidedignidade uma construção do século XVII.

Mas quero destacar algo – quase um detalhe – que achei dos mais interessantes do filme: o tabaco, plantado, curado e usado pelos índios nesse filme. Os ingleses aprendem tudo sobre o fumo com os povos que encontraram – até técnicas de cura (no sistema “galpão”) e de fertilização: ao lado do pé, enterra-se um peixe, que, pela decomposição, vai dosando elementos orgânicos e minerais no solo, fortalecendo a planta. Aliás, a ocupação e expansão da dominação européia se deram através do tabaco (Virgínia é um tipo de fumo conhecidíssimo aqui na região).
Ou seja, o repasse da tecnologia agrícola e de beneficiamento do fumo por parte dos índios implicou num golpe traiçoeiro dos “brancos”, que expropriaram as terras e, por pouco, não destruíram totalmente as sociedades e culturas autóctones da América pré-colombiana (com vários grupos isso, infelizmente, aconteceu).Como somos ingratos! Como somos ignorantes e como somos preconceituosos em relação aos povos indígenas! Nós aqui mesmo em Santa Cruz!

Tendo o desenvolvimento da região, desde os primórdios, baseado no cultivo e beneficiamento do tabaco – planta ameríndia por excelência –, não implicou valorização alguma dos povos silvícolas aqui mesmo do Vale do Rio Pardo (os cachimbos encontrados em dezenas de sítios arqueológicos atestam o uso do fumo muito antes da introdução de colonos europeus). Ao contrário: já repetidas vezes assistimos homens públicos lamentando e conjurando que os indígenas que circulam pela cidade – vendendo seu artesanato e tentando outras formas de sobrevivência – devam ser retirados da cidade, pois “enfeiam”, “denigrem” a imagem do município.

Afundaram 35 navios brasileiros, matando mais de 1400 pessoas


O livro Corações sujos, do jornalista Fernando Morais – uma extensa reportagem escrita com especial maestria – fala sobre os imigrantes japoneses e seus descendentes no Brasil durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Entre a imensa colônia nipônica concentrada principalmente em São Paulo, fundou-se a Shindo Renmei, organização terrorista que assassinou várias pessoas atuantes nas comunidades nipo-brasileiras que “desonravam o Japão”, “espalhando boatos” de que o país do “Divino Imperador Hiroíto” havia perdido a guerra, seguindo a capitulação da Itália e Alemanha. Um fanatismo quase inacreditável.

A obra de Morais é excelente, entre outras razões, porque vem muito bem contextualizada. Seria impossível, aliás, compreender a ação da Shindo Renmei sem se referir ao que estava acontecendo no mundo. Assim, “de lambuja”, o leitor recebe alguns dados muito interessantes sobre este terrível conflito com desdobramentos planetários. Pela lista de entrevistados, arquivos consultados, bibliografia, créditos das ilustrações, entre outros elementos, se vê que é um trabalho exaustivo e que implicou muita gente. Ele agradece especialmente a historiadora Ângela da Costa e Antonio Ribeiro, dizendo que os mesmo já haviam colaborado nas pesquisas para outros dois “clássicos” deste consagrado escritor: os best-sellers Olga e Chatô.

Algo que me chamou a atenção foi o número das embarcações brasileiras afundados pelos alemães [na reprodução acima, capa do jornal O Globo]. Morais informa: “Ao todo, entre novembro de 1939 e julho de 1945, eles [os alemães] afundariam 32 navios mercantes e três vasos de guerra brasileiros, sacrificando um total de 1439 vidas, entre tripulantes, passageiros e militares – três vezes mais baixas que as sofridas pela Força Expedicionária Brasileira (FAB) na Itália.”

Os afundamentos, destruições, ferimentos e mortes iam sendo noticiados nos jornais e rádios do Brasil à época. À medida que a população recebia as informações, juntadas com as internacionais, formava-se um crescente clima de hostilidade em relação aos que se identificavam ou eram identificados como “alemães”, ou seja, os “inimigos cruéis”! Mesmo quem se sentia brasileiro, para além da teuto-descendência e longe de qualquer soberba arianista, não devia escapar ao escárnio, antipatia e, até, raiva dos que se consideravam os legítimos patriotas do Brasil – ainda mais quando “a coisa” começou a degringolar para o lado das forças militares pró-Hitler.

Somando-se a “agressão à nação brasileira” através das embarcações postas a pique, confirmava-se que havia, sim, os famigerados “quinta colunas”. A espionagem nazi no Brasil era real. Morais, discorrendo sobre as desconfianças da polícia brasileira sobre a existência de arapongas japoneses, assevera: “Como a história se encarregaria de confirmar [...], a única colônia de ‘súditos do Eixo’ que de fato justificava vigilância rigorosa da polícia era a alemã. Ao contrário do que desconfiavam as autoridades paulistas, as informações sobre posições de navios brasileiros não eram transmitidas aos submarinos alemães pelos imigrantes japoneses, mas por uma monumental rede de espionagens montada pelo Reich alemão no Brasil. Apesar da má vontade de Filinto Müller [chefe de polícia do Distrito Federal, ‘germanófilo’, conforme as palavras de Moraes, cargo de confiança de Vargas e notório simpático às idéias hitleristas] com as investigações, um delegado do DOPS paulista, Elpídio Reali, acabaria contando com o apoio de Oswaldo Aranha [da ‘ala pró-Aliados’ dentro do governo Getúlio] para desbaratar o maior complexo de espionagem nazista no hemisfério sul. Poderosas estações de rádio instaladas pela Alemanha no Rio e em São Paulo, com decidido apoio de empresários alemães residente no Brasil, eram responsáveis pelas mensagens enviadas aos submarinos alemães”.

Ou seja, não dá para negar que havia concretíssimas razões para a formação de um “clima anti-germânico”. Em Santa Cruz do Sul não haveria de ser diferente a vários outros lugares de todo o Brasil, onde as mobilizações partiram da indignação e iniciativa de organizações populares, forçando a declaração de guerra aos países do Eixo por parte do titubeante governo brasileiro da época. Considerando que em meio à comunidade santa-cruzense havia até célula do Partido Nazista (a partir de 1933), entre outras manifestações explícitas de adesão à ideologia nazi-fascista, indisposições e retalhamentos – embora, muitas e muitas vezes, movidas por lamentáveis equívocos, emotividades e mesquinharias – não podem ser consideradas atitudes incompreensíveis e injustificadas dentro desse contexto de agudas oposições, onde elementos como origem nacional e etnia, enfim, xenofobia e racismo opuseram seres humanos de forma radical. A matança planejada de pessoas judias (crianças, idosos, mulheres grávidas, não importava), por exemplo, demonstra o tamanho da demência.

Incrivelmente, há quem persista chocando o “ovo da serpente”, pensando tratar-se de saudável “cultivo das raízes” e outras identificações que não conseguem esconder uma auto-atribuição de superioridade racial.

18 de out. de 2008

“Prosit!” em egípcio antigo


O hábito e a cultura dos bebedores de cerveja e do chope – que alguns dicionários definem como “cerveja fresca em barril” – é “classicamente” relacionado aos alemães (muitas vezes de forma estereotipada, é claro). Mas a origem remota da bebida, o seu “aperfeiçoamento” e mesmo a sua popularização têm tudo a ver com a África. Ou seja, os mestres primordiais do apreciado líquido derivado da fermentação do açúcar de cereais são, de fato, africanos, mais exatamente do norte do continente: os egípcios [ilustraçaõ ao lado].

Famosos pelos impressionantes saberes e domínios técnicos em praticamente todas as áreas do conhecimento humano – já há milênios –, o povo moreno do Egito foi o responsável pela fabricação cada vez mais refinada da cobiçada “loira”, hoje servida gelada (nem sempre, infelizmente...). Até mesmo os grandes bares, ao estilo das choperias ou cervejarias de agora, têm na “terra dos faraós” os seus primeiros registros – em torno de 1.500 a.C.

Digo isso para ilustrar como, ao longo da nossa história, existiu e continua existindo uma interação sociocultural intensa e muitas vezes insuspeitada ou encoberta. Podemos dizer, assim, que os purismos étnicos são muito mais uma ilusão – uma tentativa de “congelamento” artificial de algo que é essencialmente dinâmico, híbrido, mutante –; uma perspectiva limitadíssima, imbecilizante, não raro geradora de sectarismos, de sentimentos grupais discriminatórios, racistas, xenofóbicos.

Não é interessante, por exemplo, a gente pensar no quanto uma Oktoberfest – esta festividade quase carnavalesca associada a uma “Alemanha ancestral” e às “origens” de comunidades teuto-descendentes espalhados pelo mundo (inclusive Santa Cruz do Sul!) –, tendo no chope um dos seus símbolos principais, enfim, o quanto essa comemoração (ou seria “bebemoração”?) “deve” aos africanos – por terem sido eles os mais primordiais cervejeiros e bebedores habituais do alcoólico “suco de cevada” no mundo?

Pois vejam só! Até mesmo o Fritz e a Frida têm, no mínimo, um “pezinho” (ou será uma “mãozinha” – com um canecão de chope na mão?) na “Mama África” de todos nós!

Um novo templo para uma Santa Cruz que se quer germânica





Com o seu prédio inaugurado solenemente em 1939, a imponência neogótica da atual catedral de Santa Cruz do Sul pode ser vista como uma afirmação do caráter germânico ideologicamente construído no município. A edificação anterior, que abrigou o primeiro templo católico santa-cruzense, foi inaugurada em 1863 (portanto, 76 anos antes) e localizava-se bem em frente ao atual templo [foto ao lado], seguindo as linhas do que poderíamos chamar de “padrão luso”, derivado da herança estético-arquitetônica da colonização portuguesa, como ainda bem se vê em igrejas como as de Santo Amaro, Rio Pardo e até na do distrito local de Cerro Alegre.

Diferente dos protestantes, que vieram à região do Vale do Rio Pardo trazendo “de fora” (direto da região que depois se tornou a Alemanha) seus rituais e expressões religiosas (inclusive no molde dos templos, quando assim era possível), os católicos santa-cruzenses tinham o seu máximo monumento à fé cristã “demasiado brasileiro” para um grupo étnico que já havia alcançado a hegemonia econômica e política na comunidade e, ao que parece, queria demonstrar isto com veemência. Ou seja, a origem luso-brasileira estava ainda muito explícita em uma cidade que, a partir de certo momento, queria se caracterizar como “tipicamente alemã”. Ainda em outras palavras: o máximo templo da comunidade católica santa-cruzense transparecia a presença marcante da cultura de base lusitana em Santa Cruz do Sul, não mais condizente com o “espírito teuto” que dominava o município. Germanizar era preciso...

A nova igreja, erguida nos fundos da “velha”, não apenas estava substituindo o pesado prédio, cujo empreiteiro foi o inglês Guilherme Lewis, casado com a famosa Dona Carlota – uma das primeiras famílias a se estabelecer no povoado com suas simétricas ruas e logradouros recém demarcados (sob a direção do Capitão Tenente da Armada Francisco Candido de Castro Menezes). A majestade dada à nova edificação, desenhada pelo austríaco Simão Gramlich lá por 1925 (que acabou se impondo numa escolha conturbada, onde o primeiro lugar no concurso oficial ficou, na verdade, com o projeto em estilo barroco, característico da Itália e países latinos, do arquiteto Vitorino Zani), com suas duas pontiagudas torres de 80 metros, não apensas substituiu, mas suplantou de forma acachapante o templo católico dos primórdios do pequeno burgo projetado no modelo ortogonal pombalino (adjetivo derivado do famoso ministro do império português, o Marques de Pombal****), ofuscando, assim, as possibilidades de vislumbre de um passado onde os luso-descendentes – entre outras grupos étnicos e personalidades “não-alemãs” – tiveram um papel fundamental.

Ao ser derrubado, em 1940, o que restava do primeiro templo católico santa-cruzense, derrubava-se também mais um pouco dos registros históricos explícitos da multiculturalidade do município. Vai-se pouco a pouco constituindo simbolicamente a germanidade santa-cruzense, a ponto de tornar-se, cultural e politicamente, quase totalitária. Santa Cruz do Sul transfigura-se no imaginário, paulatina e deliberadamente, numa “pequena Alemanha”. E a catedral, erguida nos escombros do (assim considerado por algusn grupos) “arcaico” templo original “modelo luso-brasileiro”, torna-se por excelência o “cartão-postal”***** desta estereotipada “cidade ariana”...

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Notas:

* O texto acima são especulações que coloco como uma provocação intelectual positiva, problematizando a “história santa-cruzense”, a fim de alargar a visão sobre a constituição do nosso município, cuja complexidade formativa muitas vezes dá lugar a um folclorização calcada em uma etnofilia explícita; está muito longe de ser um estudo exaustivo, tratando-se de reflexões preliminares calcados em algumas leituras, apresentadas de forma muito sintética e pessoal.

** “Etnização do espaço urbano santa-cruzense”. Este também poderia ser o título deste texto sobre o processo ocorrido com o principal templo católico e “símbolo municipal” santa-cruzense.

*** Processo semelhante ocorreu ma tranformação do “Parque da Fenaf” (local para a realização da Festa Nacional do Fumo) em “Parque da Oktoberfest”. Fachadas e outros elementos do paisagismo foram alterados, “germanizando” o espaço (como a introdução de um mastro “típico em localidade alemãs” – embora não se tenha notícia de algum em comunidades de imigrantes assentados na região de Santa Cruz do Sul).

**** Quando li o livro do Irton Marx, sobre a criação da “República do pampa”, fiquei pasmo com algumas “argumentações” do vereador santa-cruzense mais votado (nas eleições de 2004). Numa das ilustrações , que buscam “provar” as diferenças entre a “desenvolvida” Santa Cruz e a “atrasada” Rio Pardo, estava a das ruas retilíneas da cidade germânica, contra o “caos lusitano” das vias e prédios rio-pardenses. Escrevi um pouco sobre isso um tempão atrás e recebi muitos “elogios” de ferrenhos defensores das teses “irton-marxistas”. Lembrei disso neste fim de semana ao ler um artigo da revista Ágora (não confundir com a Agora), do Departamento de História e Geografia da Unisc. O artigo é da professora de arquitetura Maria da Graça Sebbem, com o título “A corrente imigratória alemã e a formação urbana”. Após analisar as características das aldeias alemãs donde vieram os imigrantes e os assentamentos aqui no Brasil, destacando Santa Cruz, Venâncio Aires, São Leopoldo, Novo Hamburgo e outros, ela conclui que “as colônias [a ocupação no meio rural] alemãs do RS foram planejadas por técnicos de origem lusa, baseadas na concepção da cultura lusitana. No último parágrafo arremata: “a forma das cidades [os assentamentos urbanos] de imigração alemã no RS herdaram poucas influências(ou nenhuma) das cidades alemãs de onde vieram os imigrantes.”

*****O livro Catedral São João Batista (Edunisc, 2006) do professor e arquiteto Ronaldo Wink é um importante documento, com vários dados fundamentais para se perceber a importância, a magnitude, o simbolismo do templo católico máximo santa-cruzense. E, para além de subjetivismos que não caberiam num trabalho estritamente acadêmico e a continuidade de um enfoque historiográfico centrado num grupo étnico – os teuto-descendentes –, emergem, direta e indiretamente, informações que podem gerar, paradoxalmente, uma abertura à visão “germanófila” (apologética e vitimista) da história de Santa Cruz do Sul. Após 76 anos de uso (os dados já foram mencionados no texto acima), a destruição da antiga matriz, erguida praticamente junto com o núcleo planejado e executado pelo governo provincial (urbanificando o que era um povoado – o Faxinal do João Faria) e várias vezes ampliado, carregando em suas estruturas a estética, o trabalho e a devoção de inúmeras personalidades e grupos étnicos dos primórdios da região de Santa Cruz – lusos, negros (os trabalhadores por excelência na época, que até os tijolos fizeram – vários, provavelmente, na base da atual catedral), teutos (já chegados na localidade), mestiços (índios arranchados pela região e no aldeamento de São Nicolau, em Rio Pardo) e até ingleses, como o empreiteiro Guilherme Lewis e seu filho pintor (responsável pelas pinturas internas do templo original), além de sua esposa, Dona Carlota, notória liderança comunitária (como ressalta o médico e estudioso viajante Robert Avé-Lallemant) –, essa sólida construção, pronta para durar séculos, é simplesmente eliminada. A prova da sua fortaleza está nos trabalhos finais de demolição, que consumiram oito meses e demandaram técnicas especiais para o seu solapamento completo (ver páginas 85 e 86) – sendo que havia outras alternativas à eliminação da entroncada e enraizada edificação. Mas apesar dos esforços em contrário de pessoas e manifestações de parcelas da comunidade (ver a ação do Pe. Alfredo Blay), a igreja, quase octogenária, esfumaçou-se para a “total glória” do projeto original do alemão/austríaco Simon Gramlich, modificado pelos engenheiros Heinerich Schütz e Ernest Matheiz. Um ato que hoje seria considerado bárbaro, irresponsável, escandaloso e até criminoso. Mesmo tendo se passado 58 anos (em 2008) do final da destruição do antigo templo, tal fato deveria nos constranger ou ao menos ser motivo de reflexão – enquanto munícipes santa-cruzenses. Afinal, que tipo de valorização do passado, dos antepassados, dos documentos e outros elementos históricos nós em verdade queríamos e queremos preservar e difundir? Em que medida e qual significado e dimensão político-ideológico se insere a substituição da antiga matriz “brasileira” pela catedral “alemã”? São hipóteses e questionamentos que ainda precisam de aprofundamentos.

Tradições postiças


*Estou publicando "pingado" aqui no blog os demais textos/comentários que estão reunidos no polígrafo "Além do Loiro Imigrante: História, Identidade Étnica e Exclusão Social na Região de Santa Cruz do Sul", que editei em 2005. Abaixo, mais um deles, feito a partir da leitura de um artigo do renomado professor Flávio Kothe.


Num texto muito instigante – Imigração e Colonização: Utopia e Identidade – publicado na revista do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Unisc (Redes, vol. 6, número especial, pág. 105 a 127, maio de 2001), o santa-cruzense, professor Flávio Kothe, lecionando na Universidade de Brasília, com pós-doutorado nas universidades de Heidelberg, Konstaz, Bonn e Berlim, nos introduz em um entendimento pouco comum sobre as colônias formadas por imigrantes teutos, em especial as surgidas em meados do século 19, caso das da região de Santa Cruz do Sul. Ele diz que “Há uma ligação profunda entre a repressão conservadora à Revolução Liberal de 1848, na Alemanha, e a segunda onda de imigração alemã para o Brasil, a partir de 1849. Foi um projeto revolucionário, a maior distribuição igualitária do produto social, num país dominado pelo latifúndio escravagista. As idéias que não podiam ser postas em prática na Europa foram transpostas como utopia concreta para o Brasil.”

Ocorreu que, no processo (autoritário) de “assimilação” desse contingente de origem germânica no território brasileiro, as característica e propostas solidárias e liberais foram sucumbindo paulatinamente, dando lugar a arremedos de cultura e história. Kothe explica: “A maioria dos teuto-brasileiros descende de povos que vem sendo inexoravelmente extintos na Europa – pomeranos, silésios, sudetos, boêmios, lorenos, alsacianos alemães (...). No Brasil, essa consciência histórica tem sido sistematicamente reprimida, tanto pelo Estado, a escola e a Igreja, quanto pelos próprios teuto-brasileiros. Estes são levados, então, a se identificarem com a cultura dominante mais próxima, como o tipo gaúcho do sul do Jacuí, e ficam dançando fantasiados nos CTGs, usando bombacha e trovando, ou então se identificam com o estereótipo dominante do alemão, o bávaro, o tipo alemão mais reacionário, e daí celebram a Oktoberfest, usando calça curta de couro e erguendo canecões de cerveja, embora nenhum descenda de bávaros, pois não houve quase imigração de Bayern para o Brasil. Assumem como própria uma identidade e uma história alheia (...).”

Em relação aos políticos que representam as regiões de colonização alemã, o professor também é contundente, registrando que eles “não têm sido ‘conservadores’ no sentido de tentarem ‘conservar’ os princípios éticos de seus antepassados, mas por apoiarem o processo de uma crescente desigualdade social, apoiarem governos ditatoriais e ajudarem a destruir a identidade de grupos sociais diferenciados.” No mesmo parágrafo, Kothe arremata: “A história das regiões coloniais é, sob a aparência do êxito de sua concretização, a história da traição aos ideais fundantes. A política de ‘assimilação’ era necessária para que se aniquilassem esses ideais, e não se impusesse por toda parte o princípio da igualdade na distribuição de terras e na participação do poder, o princípio da liberdade de opinião, crença e de ir e vir, o princípio da fraternidade numa sociedade profundamente dividida em classes, camadas e minorias.”

O autor do artigo da revista Redes volta à carga, constatando que “Os brasileiros descendentes de imigrantes perderam a língua, a dança, a música, o teatro, os valores, a cultura, a história, a identidade dos antepassados. Não lhes foi permitido acrescentar, praticamente, nenhuma palavra à língua falada no Brasil, nenhuma contribuição cultural relevante. No máximo, com a pax romana instituída, foi permitido aos teuto-brasileiros cultivarem a sua “Oktoberfest”, uma festa típica de Munique, de uma cultura que nada tem a ver com a de seus antepassados: eles assumem como sua identidade o estereótipo vigente e, vestidos de Lederhosen, gritando alto e levantando canecões de Bier, ostentam, em sua alienação, a caricatura de si mesmos, a vulgarização que os mostra e demonstra como vulgares. Os revolucionários de outrora se revolvem em suas tumbas, mordendo a grama pelas raízes para não gritarem o fracasso de suas esperanças, a inutilidade dos seus esforços. Como eles não têm mais cordas vocais, também nada mais se ouve, tudo se torna apenas fantasia. O vento que sopra as sombras sobre suas tumbas parece apenas aplaudir o ridículo, o fracasso que vieram a ser os seus esforços ideais.”

O escrito é bem mais rico do que os fragmentos que aqui pinçamos, merecendo uma leitura completa e detida. De qualquer forma, como foi dito, estamos diante de uma perspectiva tão inusitada quanto potencialmente transformadora do modo de compreendermos a complexidade do fenômeno da imigração e colonização alemãs em Santa Cruz do Sul. Quem sabe também sirva para repensarmos este jeito artificial (e reacionário) de “cultivar a tradição” no município e região.

17 de out. de 2008

A história comprova: o Inter é mais povão (Hehe!!)





Além de obras perturabadoras de Camille Paglia, voz dissonante do (pós)feminismo, andei pegando esses dias uns livrinhos “menos intelectuais” para me divertir: falam da história do Esporte Clube Internacional, o “Co-co-cororado!”, como dizia o negro apelidado Charuto, torcedor fanático, que, curiosamente, “assistia” aos jogos do seu “Cororado” de costas para o campo, andando para um lado e outro, proferindo uma espécie de exortação ininteligível (a não ser a expressão de júbilo “Co-co-cororado!”) ao pessoal da arquibancada – no tempo do Eucaliptos. (A expressão “Cororado” é obviamente uma variante de “Colorado”. A “troca” do “lo” por “ro” advém de um sotaque derivado de línguas ou dialetos da África, cuja reminiscências-resquícios mantinha-se na “colônia africana” de Porto Alegre dos anos 1930 e 40, situada em partes do Bom Fim e Cidade Baixa.)

Pois achei nessas obras apologéticas e nostálgicas elementos para “referendarem” o meu vínculo com o Internacional. O inegável Campeão Mundial foi fundado por iniciativa de três irmãos, os gajos Henrique, José e Luís Poppe Leão, vindos de São Paulo. Ao contrário de outros clubes portoalegrenses, eles queriam criar uma agremiação que fosse aberta a brasileiros de várias origens e estrangeiros. “Uma clara alusão à política de discriminação dos outros clubes de futebol de Porto Alegre”, diz Rui Carlos Ostermann, em Meu Coração é Vermelho, da editora Mercado Aberto, publicado em 1999. O comentarista esportivo e filósofo complementa: “Não será outra razão que o Internacional [alusão a esta integração de nacionalidades], a partir da década de 20, abrirá a sua sede e dará lugar no seu time aos jogadores que pertenciam às muitas ligas que organizavam competições entre clubes representativos de negros (a famosa Liga da Canela Preta, por exemplo [jocosa alusão racista, demonstrado que o apartheid à brasileira vigorou – e vigora ainda em certa medida – na capital do Estado e aqui na região também, como se vê nos clubes sociais “diferenciados”]), de funcionários públicos, de empregados do comércio e de estivadores.Ou seja, gente bem mais “povão” do que, por exemplo, o Grêmio Futebol Portoalegrense, “assim dito um clube de alemães, o que se evidenciava de fato nas escalações dos times desse início de século [XX]”, atesta o professor Ruy.

Luis Fernando Veríssimo, no livro Internacional: Colorado ou Autobiografia de uma Paixão – de 2004, coleção Camisa 13, da Ediouro –, fala assim, racionalizando a sua escolha colorada, já que seu pai, Erico “O Tempo e o Vento” Veríssimo, não se ligava em futebol e não induziu (eufemismo para “obrigou” ou “impôs”) a identificação clubística lá nos meados de 1940: “O Grêmio era o clube dos grã-finos, não aceitava jogadores negros. O Inter era o ‘Clube do Povo’, a maioria dos seus jogadores era de negros. Não que, aos dez anos, eu me preocupasse muito, a ponto de me revoltar. Com divisão de classe e racismo. Só achava mais simpático aquele time dos pobres que regularmente batia o time dos ricos.”

O cronista multitalentoso Veríssimo, conta como – vivendo à época na Califórnia (onde o seu pai lecionava Literatura Brasileira) – era afetado pela “mobilização guerreira” dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, sintetiza assim sua simpatia transladada para as disputas interclubes no Rio Grande do Sul: Era “O negrinho contra o alemão. Talvez eu continuasse mobilizado para a guerra.”

Mas não chega a cair em muita parcialidade. O cara que aprendeu a gostar de jazz – e depois tocar sax –, freqüentando bares vinculados à comunidade negra americana (demonstrando que lá continuavam as divisões racistas), pondera que “Na verdade, o preconceito com o preconceito do Grêmio era injusto.” O Colorado também mantinha uma política anti-negros (embora aberta a outros grupos étnicos), segurando ainda a idéia de que futebol era coisa para moços “de boa família”, ressaltando, assim, ainda mais o pensamento tremendamente degradante, de que jamais alguém de pele escura poderia ser de “família de bem”.

A partir dos anos de 1920, o Inter começa a buscar jogadores na tal Liga da Canela Preta, atraindo, também, cada vez mais a população negra pra sua torcida. O Grêmio manteve a segregação até 1952 (ou seja, 30 anos de racismo a mais do que o Colorado, “título” nada glorioso...), quando contratou Tesourinha, vindo do Vasco – antes consolidado como craque “cororado”, legendário jogador, que recebia um litro de leite por dia, a modo de pagamento no início da sua carreira...

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*A expressão “Cororado” é uma variante de “Colorado”, obviamente. A “troca” do “lo” por “ro” é um sotaque que deriva-se de línguas africanas, cuja reminiscência/resquícios mantinha-se na “colônia africana” de Porto Alegre dos anos 1930 e 40, situada em partes do Bom Fim e Cidade Baixa.

**Erico, Luis Fernando e Eduardo Peninha trabalharam como tradutores, jornalistas e um monte de outras funções ligadas à cultura, história e artes. Todos eles “não tinham faculdade”. Veríssimo, abertamente, depois de fazer o high school, já de volta ao Brasil, diz que não lhe interessava fazer faculdade; foi trabalhar – no Rio de Janeiro (onde se casou e já teve a primeira filha), na Livraria Globo, no então minúsculo jornal Zero Hora (mas o “grosso” vinha mesmo é de seu emprego em agência de publicidade).

***Não sabia que coréia – o lugar no estádio onde fica a torcida em pé – se refere à guerra da Coréia com os EUA, no final dos anos 40. O nome “aludia” à desgraceira que era o espaço, sempre em conflagração, à semelhança do “cenário bélico” onde se engalfinhavam coreanos, americanos e chineses. Se fosse no tempo do Vietnã, a coréia se chamaria provavelmente vietnã...

A força gabiru na “raça” gaúcha e brasileira: Inter, Campeão do Mundo!!!



Na data histórica de 17 de dezembro de 2006, escrevi um comentário que quero compartilhar com vocês:


Estou fazendo estas anotações enquanto escuto ao fundo a histeria colorada aqui na frente de casa, na Imigrante - que é, como vocês sabem, a “Meca” desse tipo de comemoração em Santa Cruz. Mesmo que eu não quisesse, estou no meio do rebuliço, no bom sentido!

Confesso que não dou muita bola (bola!) pra futebol. Meus tempos de fanatismo foram lá pelos 10 a 14 anos, por aí, quando, de verdade, ficava deprimido com derrotas do Inter e vivia o domingo com um rádio, acompanhando nervoso toda a jornada esportiva da Guaíba, que era a minha emissora predileta – por mais uma influência do meu pai, colorado que amaldiçoava o tempo todo o seu próprio time enquanto jogava, chamando os jogadores de podres, cornos, burros, etc. Eu achava aquilo irritante e não entendia bem “qual era a dele”, mas fui compreendendo que aqueles xingamentos, aquelas maldições lançadas com fúria aos jogadores eram, na verdade, uma forma de dissipar a tensão e demonstrar, ao avesso, a sua paixão.
Enfim, mesmo que "desligado" de futebol, revivi hoje um pouco daquela alegria infantil enorme que experimentava nos anos de 1970 – e creio que a alegria em futebol tem muito de “coisa de criança”, de simulacro, de brincadeira. Foi um prazer saltar aqui na sacada do meu AP e congratular-me com os vizinhos colorados a vitória espetacular contra o "invencível" Barça. Gritei de doer a garganta, participei da passeata e fiquei lá em baixo do edifício para ver a "volta olímpica" que os torcedores santa-cruzenses do Inter deram aqui pela avenida, todos a pé, num estado de euforia, de desforra, de encantamento – estavam quase foras de si de tanta felicidade.

E mais um time gaúcho mostrou sua "raça" no Japão. E esta "raça" inclui gente como Adriano Gabiru, Iarley e Ceará, ou seja, NORDESTINOS. Isso é pra calar a boca de uma “gauchada” com laivos xenófobos, que, até, pedem a separação do Brasil. Parece-me um discurso muito do elitista, à beira do racismo. Depois de muitas peleias com “os castelhanos” ao longo de séculos de definição de fronteiras, feitas por soldados de origem lusa, por mestiços, por negros “bucha de canhão” e também mercenários de tudo quanto é canto do mundo (incluindo a Prússia), garantindo assim as terras para assentar colonos de lugares como a Alemanha e Itália, se quer um “desquite”, já que alguns se acham de uma estirpe superior e vitimizados por outros estados do Brasil – algo que não se comprova nem mesmo por indicadores econômicos reais.

Aliás, nordestinos, mais propriamente cearenses, também colonizaram Santa Cruz do Sul. Em 1900 chegava uma leva de 90 pessoas do Ceará, que depois são fixados pela região santa-cruzense, conforme registrou o professor Hardy Martin. Vai que muito santa-cruzense, que se tem por “ariano puro”, não tem logo ali atrás uma “cruza” com os mesmos antepassados dos nossos bravos Adriano Gabiru e Ceará?!

Última coisa: Sem mentira, em todas as disputas que o Grêmio teve em nível nacional e internacional, incluindo o mundial interclubes, eu torci com afinco pelo tricolor. Graças aos deuses, consegui ampliar a brincadeira que é o mundo do futebol (pelo menos para os torcedores, que se nutrem da emoção de uma filiação e disputa que rigorosamente não passam de uma abstração mental com fins lúdicos), de forma a não me tornar prisioneiro da incorporação permanente de personagens sectários.

Viva o Brasil, viva o Rio Grade do Sul, viva o mundialmente consagrado Internacional!
E assim encerrei, com ardor, o meu comentário dirigido, à época, a amigos de uma lista de contatos por intermet. Dias depois, numa crônica do Luis Fernando Verissimo, publicada no jornal Zero Hora de 21 de dezembro de 2006, fiquei muito contente em ler algo bastante similar ao meu comentário. O consagrado escritor – e colorado de quatro costados – fala que é um equívoco se pensar que “A vitória do Inter em Tóquio seria mais um triunfo do estilo gaúcho de jogar futebol. (...) Um estilo forjado pelo clima europeu, por uma história de feitos varonis etc.”. E aí ele pergunta: “Mas como se explica que a maioria dos jogadores que estavam em Tóquio não era de gaúchos?” Ou seja, o campeonato mundial, diz Verissimo, foi vencido por “falsos gaúchos”, complementando, com seu bom humor e ironia: “No bom sentido, claro.”

Eu acho que o filho do também grande Erico Verissimo compreende muito bem o quanto é bobagem ou mesmo estupidez achar que existe algo muito diferente no Rio Grande do Sul que possa nos distinguir do “resto” do Brasil. Com certeza, existem diferenças, mas, muito mais, há semelhanças, identificações comuns e complementaridades, que nos fazem uma nação humanamente rica e cheia de positividades.

REDUÇÕES JESUÍTICAS NO VALE DO RIO PARDO: Espanhóis são os primeiros europeus a ocuparem a região e cooptarem indígenas no século XVII




Seguem alguns textos trazendo dados e comentado a presença e fixação de missionários jesuítas espanhóis [ao lado, reprodução de alegoria] no Vale do Rio Pardo nos anos de 1600 – bem antes da chegada e instalação portuguesa e, ainda mais, do início dos assentamentos com colonos “alemães”. São informações que pouco são consideradas na historiografia regional, empobrecendo-a, na minha opinião.


Reduções jesuíticas no Vale do Rio Pardo

Há um bom tempo tenho lido diversos materiais sobre os povos indígenas e sua presença aqui no Vale do Rio Pardo. Vários pequenos artigos que escrevi para jornais locais são fruto dessas leituras e reflexões sobre essa temática, especialmente no contexto regional. Nos últimos dias, por conta de um estudo que estou alinhavando, acabei voltando minha atenção a algo pouquíssimo conhecido pela população em geral e mesmo entre os nossos professores de história. Trata-se das reduções jesuíticas localizadas ao longo do rio que dá nome a nossa região, ou seja, o Rio Pardo.

Sim! Foram três reduções, sendo a mais importante chamada Jesus Maria. Calcula-se que, pelo menos 1600 (mil e seiscentas) pessoas – índios guaranis ou guaranizados na maioria (pelas indicações), sob a coordenação de padres jesuítas espanhóis – viveram nesta redução, que fica em área onde hoje é o município de Candelária.

A fundação da Redução Jesus Maria é de 1634, ou seja, quase 50 anos antes do início dos famosos “Sete Povos das Missões” – e mais de 300 anos antes da introdução dos primeiros colonos alemães na Linha Santa Cruz. (Já os grupos de origem lusa se estabeleceram nas zonas de campo da região em meados do século XVIII.)

Entre as “curiosidades” dessas reduções, pode-se citar a introdução do gado na região (bovinos, suínos e ovinos) e a existência da forja de ferro. Por José Maria passava o que é chamado de “Linha dos Ervais Nativos”, que se estende desde o Paraguai até o Rio Grande do Sul.

O “descobridor” do local da Redução Jesus Maria foi o já falecido professor Hardy Martin, junto com uma equipe do Museu do Colégio Mauá. Isso em 1968. Até ali, tinham-se apenas notícias da existência das reduções vale-rio-pardenses por intermédio de relatos bibliográficos. Esse pessoal, que incluía o ainda ativo arqueólogo Pedro Mentz Ribeiro (fundador do Centro de Ensino e Pesquisa Arqueológicas da Unisc), pesquisou e acabou encontrando diversos resquícios da ocupação do território pela comunidades jesuítico-indígena – utensílios cerâmicos (vasilhames, cachimbos), de louça, ferramentas de pedra (machados, afiadores), de ferro (tenaz, tesoura, pregos), chumbo, objetos de cobre, vidro e até concha de mar (os índios provavelmente viajavam até o litoral por meio de canoas, partindo pelo Rio Pardo, passando pelo Jacuí, lago Guaíba etc., chegando assim ao Atlântico!), além de alterações nos terrenos que confirmam a existência de edificações no local (trincheiras ou muradas de proteção, por exemplo).

As reduções no Vale do Rio Pardo tiveram uma curta existência – três anos –, mas suficiente para demarcar uma presença histórica importante na região. O bandeirante Antônio Raposo Tavares, preador de escravos, venceu a resistência dos núcleos pela superioridade militar, fazendo-as desaparecer pela morte e dispersão da população. Alguns grupos sobreviventes se mantiveram circulando na região, outros, migraram em definitivo.

Parece-me espantoso que a existência dessas reduções não tenham até hoje ganho uma repercussão maior em nossa região. Até onde sei, estudos maiores não tiveram continuidade após a identificação do local pelos pesquisadores do Colégio Mauá – a não ser pelo já citado Mentz Ribeiro (em sua dissertação de mestrado ele aborda o assunto novamente). Quer dizer, temos aqui no Vale do Rio Pardo, na primeira metade do século XVII, três focos de ocupação do território por parte de comunidades indígeno-jesuíticas, que vêm a ser, através dos padres espanhóis, o primeiro estabelecimento de europeus na região (ressalto: antes dos portugueses e muitíssimo antes dos teutos!); que também vem a ser, sobretudo, um fenômeno de convívio entre brancos da Europa e nativos sul-americanos que tanto tem intrigado, por diversos motivos, estudiosos e leigos (caso dos “Sete Povos das Missões”). Entretanto, isso tudo parece soterrado – não só pelo solo e a vegetação, mas por um desinteresse com raízes no preconceito.


Vale do Rio Pardo e os Sete Povos das Missões: íntimas ligações

Dias atrás “topei” com algo que achei interessante dentro da minha busca por informações sobre a “proximidade” histórica e cultural do Vale do Rio Pardo com as Missões Jesuítico-Guaranis. Indicadores disso – e que já mencionei em outras ocasiões – são, por exemplo, a existência, por volta de 1630, de três reduções jesuíticas ao longo do rio que dá nome à nossa região (Rio Pardo), além da existência da Aldeia de São Nicolau, na cidade de Rio Pardo, cujos índios aldeados provinham da região missioneira (Obs.: eles extraiam erva-mate em terras que ficavam em pleno coração do que veio a ser, mais tarde, Santa Cruz do Sul, Monte Alverne; a área desses índios foi lhes retirada em 1859, ou seja, já passados 10 anos da introdução de colonos germânicos na região, numa “operação” ainda não esclarecida). Tais fatos são quase completamente ignorados por aqui, mesmo entre professores de história.

Outro fato que não se deve esquecer é o mencionado pelo historiador Dante de Laytano: até meados do século XIX, o guarani era um idioma tão comum quanto o português na cidade de Rio Pardo, núcleo urbano catalisador de vasta extensão geográfica, donde "A Capital do Fumo" (Santa Cruz) e "A Capital Nacional do Chimarrão" (Venâncio Aires), por exemplo, derivaram-se (tabaco e erva-mate são plantas desenvolvidas pelos indígenas!).

Mas voltando ao que “achei” dias atrás... É o seguinte: No livro Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul – 1605-1801, do historiador Guilhermino Cesar, cuja 3ª edição saiu em 1988 (a primeira edição é de 1969) pela Editora da Universidade (UFRGS), um dos textos se refere a um acontecimento festivo no município de Rio Pardo em 1794, cuja “notícia” foi publicado na Gazeta de Lisboa com o título "Festa grossa em Rio Pardo". A celebração, que durou cinco dias (!), foi patrocinada pelo tenente-coronel Patrício José Corrêa Câmara, por ocasião do nascimento da sua filha, que recebeu a poética alcunha de Sereníssima Princesa da Beira. O militar foi figura destacada no processo de incorporação dos Sete Povos das Missões ao Brasil em 1801.

Guilhermino Cesar anota assim em seu comentário inicial, antes de reproduzir a crônica (os grifos e as palavras entre colchetes são meus): “O núcleo urbano [de Rio Pardo], habitado de início por soldados, índios e aventureiros de todo matiz, cresceu ordenadamente desde a instalação de famílias açorianas no fértil vale do Jacuí. (...) Rio Pardo, de núcleo militar que era, se transforma então [após a “expulsão” dos jesuítas dos “pueblos das Missões do Uruguai”] no denominador comum da vida missioneira, atraindo assim para si a indiada vaga, os peões de estância, os contrabandistas de gado. E o vale do Jacuí [onde se destaca Rio Pardo e sua vasta região], poderoso fixador de gentes, aproximou ainda mais a cultura luso-brasileira e a cultura hispano-guarani (...).”

Quer dizer: antes – com as reduções jesuíticas que mencionei em 1634 – e depois, já em 1859, (e também “durante” o desenvolvimento da civilização missioneira!), no ocaso dos Sete Povos das Missões, há “ligações íntimas” com Vale do Rio Pardo...


Íntimas ligações II

Tenho falado das “íntimas ligações” entre o Vale do Rio Pardo e a região das Missões. Nos fragmentos abaixo, que retirei do livro Colonialismo e Missões Jesuíticas, do historiador Moacyr Flores, editado em 1983, isso fica ainda mais evidente. O próprio surgimento do núcleo militar, urbano, político e comercial de Rio Pardo está ligado diretamente à questão das povoações jesuítico-guaranis e seus domínios. Não foi uma “história de amores”, não! Pelo contrário: há, tragicamente, muito sangue e interesses político-econômicos por todos os lados.

E de novo tenho que dizer: nossa região – o Vale do Rio Pardo – tem uma história fantástica, muitas vezes solapada por uma visão reducionista, focada nos “brancos”, lusos e alemães, especialmente.

Segue os fragmentos com umas observações minhas entre colchetes:

“Preparando os meios para prosseguir com a demarcação dos limites estipulados pelo Tratado de Madrid [de 1750, no qual a Espanha cedia a região dos Sete Povos das Missões a Portugal em troca da Colônia do Santíssimo Sacramento], o general Gomes Freire de Andrada, ao chegar à vila de Rio Grande a 6.4.1752, determinou a construção de dois depósitos de víveres e munições, para apoio e abastecimento das tropas que dariam cobertura à expedição demarcadora de fronteiras. O furriel de dragões Francisco Manuel de Távora, chefiando alguns paulistas explorou o rio Ingayba, antigo nome do Jacuí, sugerindo a construção de um depósito na confluência do rio Pardo e outro a 15 léguas abaixo, numa forqueta do Taquari com o Jacuí, que mais tarde deu origem a Santo Amaro.”

“O engenheiro João Gomes de Melo demarcou as trincheiras do forte Jesus, Maria e José sobre uma colina que dominava a confluência do rio Pardo com o Jacuí, onde se arranchou o destacamento comandado pelo capitão Francisco Pinto Bandeira.”

“Quando os missionários descobriram que os portugueses construíram ranchos no rio Yobi (Pardo), perto das estâncias e ervais de S. Luis, S. Lourenço e S. João, reuniram 350 guerreiros e em 22.2.1754, atacaram e mataram 2 negros que estavam de sentinelas avançados, com mais 14 portugueses na linha de trincheira. [Ao final da “peleja”, com vários lances, pilhagem, decapitação etc., morreram 28 índios missioneiros.] (...) Procurando afastar a ameaça lusitana, os missioneiros reuniram 500 guerreiros e marcharam contra Rio Pardo, pela segunda vez, a 29.4.1754 [ou seja, dois meses após o primeiro ataque], que agora já estava com fosso e paliçada, inclusive o caminho do forte até o pequeno porto estava protegido por forte estacada.”
“Os índios, procurando surpreender a guarnição, cruzaram o rio mais acima, através de uma ponte madeira. Na saída do mato encontraram 5 negros que cuidavam da cavalhada portuguesa. Na rápida escaramuça morreram os negros e 3 índios, entre eles o tenente corregedor de S. Miguel [a denominação do cargo desse índio demonstra a organização militar e administrativa dos povos missioneiros da época]. (...) [Após tiros de escopetas e pequenos canhões, os índios mantiveram um cerco nas imediações do forte rio-pardense. Os portugueses içaram bandeira branca, anunciando o desejo de negociar o conflito.] Sepé Tiaraju, índio de S. Miguel (...), entrou no forte para parlamentar com o comandante (...). [Caíram numa cilada e, após tentativas frustradas de negociação, Sepé conseguiu fugir, mas 53 cativos indígenas foram enviados para a vila de Rio Grande por um barco através do Jacuí; houve um levante e entre afogados que se atiravam no caudaloso rio e os mortos pelos escoltadores no barco, sobram apenas 14 índios. Além de portugueses, no navio havia um paraguaio e 2 negros, o que demonstra a significativa presença de afro-descendentes no início da ocupação lusitana no território do Vale do Rio Pardo.]”

“Os jesuítas conheciam muito bem a geografia das cercanias da fortificação portuguesa [o forte Jesus, Maria e José], pois no documento que relata os acontecimentos deste segundo ataque, há uma descrição pormenorizada da região, mostrando que da confluência dos rios Jacuí e Pardo, podia-se atingir uma vasta área utilizando a rede hidrográfica (...).”


O PIONEIRISMO DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA NO VALE DO RIO PARDO

“Descobri” uma revista que já vem lá dos anos 50 do século passado. Chama-se “Pesquisa”, editada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas, de São Leopoldo. Há nas edições estudos antropológicos, históricos, arqueológicos, botânicos, paleotológicos etc. “Achei” a coleção nas estantes de periódicos da biblioteca da Unisc. Para quem se interessa por etno-história, em especial sobre os índios do Brasil meridional e de países adjacentes (Argentina, Uruguai e Paraguai, principalmente), é uma mina de ouro.

Duas revistas me interessaram demais, e estão me anunciando uma possibilidade de alargamento de conhecimentos sobre o passado da região de Santa Cruz.

Um dos assuntos, que vou comentar uma outra hora em mais detalhes, tem a ver com a palestra de um padre historiador, Arthur Rabuske, transcrita no nº 22 (série História, 1982). Intitulada "Jesuítas alemães em suas relações com o elemento negro em nosso passado gaúcho", faz uma referência – breve, mas que me despertou enorme curiosidade – envolvendo um antigo educador jesuíta do Colégio São Luís de Santa Cruz do Sul, o Ir. João Immler. Rabuske diz que "em plena Colônia Alemã", o Ir. Immler mereceu o "cognome de apóstolo dos negrinhos", visto a sua dedicação, em especial nos seus últimos 30 anos de vida, às aulas particulares e catequese de crianças negras na Santa Cruz, suponho, do começo do século XX – conforme apontam as referências ao Ir. Immler que encontrei no site do Colégio São Luís, onde diz, ainda, que o “dedicado religioso” foi "prefeito de disciplina" até 1913, mantendo uma "escola noturna para adultos" entre 1912 e 1927. Há aí, pois, dados apontando a presença nada desprezível de negros na virada do século em Santa Cruz, algo que é sistematicamente negado ou, ao menos, desprezado historicamente – dentro da estratégia estúpida de apresentar a história do município como algo feito unicamente pelos imigrantes alemães e seus descendentes.

Mas o que eu vou me referir aqui é sobre as REDUÇÕES JESUÍTICO-GUARANIS NO VALE DO RIO PARDO ou da PRIMEIRA OCUPAÇÃO EUROPÉIA NO VALE DO RIO PARDO ou, ainda, O PIONEIRISMO DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA NO VALE DO RIO PARDO. As informações vêm da revista Pesquisas nº 47 (série Antropologia, 1992). Na edição está o trabalho intitulado “Lideranças Indígena no começo das reduções jesuíticas da Província do Paraguay”, de Ítala Irene Basile Becker, uma das mais produtivas e antigas pesquisadoras dos povos indígenas do sul do Brasil.

Só sistematizarei uns poucos dados que a Ítala apresenta sobre as três reduções que se localizaram no Vale do Rio Pardo. O trabalho dela é bem mais amplo e se concentra nas lideranças indígenas – os “caciques” – das Frentes Missionárias Jesuíticas, compostas de umas 60 reduções.

É possível obter muito mais informações sobre as três reduções vale-riopardenses. Mas isso depende de mais pesquisa. Já mencionei os trabalhos e textos acadêmicos do arqueólogo Pedro Mentz Ribeiro sobre o assunto. Mesmo assim, falta muito. Falta, principalmente, “notar” a fascinante epopéia desses espanhóis aqui no vale, onde não faltaram um trabalho descomunal de cooptação de milhares de indígenas e, da mesma forma, uma destruição sangrenta dessas obras. Não esqueçam que o bandeirante que a gente estudos lá no Estadual, o Raposo Tavares, passou por aqui – ao longo do rio que dá nome a região – com um exército de mais de 1.500 pessoas bem armadas para época.

Redução de San Joaquín

Fundação: 1633; Localização: nascentes do Rio Pardo (proximidades de Barros Cassal); Aspectos geográficos destacados: em meio a então chamada Serra do Botucaraí, em terreno escarpado; Fundador: Pe. Pedro Romero; Outros jesuítas: Francisco Jiménez (reitor interino), Juan Suárez (responsável pelo término da igreja)
Lideranças indígenas destacadas: Caruay, Aryá (ou Ariyan) e Itapay; Famílias reduzidas: 1.000; Produção rural destacada: milho, feijão (variedade especial) e trigo.

Redução de Jesús Maria

Fundação: 1633; Localização: margem direita do Rio Pardo, cerca de 20 a 25 quilômetros acima da foz do Rio Pardinho (no município de Candelária); Aspectos geográficos destacados: a redução mais avançada para leste fundada no atual território do Rio Grande do Sul; Fundador: Pe. Mola; Outros jesuítas: Cristóbal de Arenas e Cristóbal de Mendoza; Lideranças indígenas destacadas: Apecé, Antonio Carayuchuré, Ayerobiá, Chemombé, Tayubaí e Yaguacapurú; Famílias reduzidas: -; Produção rural destacada: gado.

Redução de San Cristóbal

Fundação: 1634; Localização: margem direita do Rio Pardo, abaixo de seu afluente Pardinho – a duas léguas da Redução de Jesús Maria (proximidades de Santa Cruz do Sul); Fundador: Pe. Agustín Contreras; Outros jesuítas: -; Lideranças indígenas destacadas: Antonio Carayuchuré e Yaguacapurú; Famílias reduzidas: 950 (pessoas); Produção rural destacada: -.

*Algo que Ítala Becker também se refere, e que poderia ser bastante “escandaloso”, justificando, até, a ojeriza e opressão imposta aos índios, é o fato dos guarani da região praticarem a antropofagia – de forma ritualística. Ou seja, comiam carne humana em determinadas circunstâncias especiais. As indicações são de que, na medida que suas organizações sociais tradicionais eram solapadas pela ocupação/imposição física e cultural européias, a tradicional antropofagia teve um recrudescimento: comia-se mais gente! Entre as hipóteses para isso está o aumento dos conflitos internos entre grupos guarani, uns cooptados pelos padres jesuítas, outros resistindo à “conversão”, gerando uma crise jamais vista entre os nativos.

Além da antropofagia ritualística, há a poligamia, organização familiar comum, em especial entre lideranças. Ao aumentarem as suas relações de parentesco, os “caciques” aumentavam também o seu poder de influência. A poligamia, assim, é revestida de um componente político de difícil compreensão à moralidade cristã dos padres, que investiram todo o seu fanatismo evangélico para convencer que a monogamia era algo ditado por “Deus”...

16 de out. de 2008

O feijão e o sonho em Rio Pardinho: Memórias de Luis Panke

Seguem dois textos e complementos que redigi a partir da leitura de Memórias de Luis Panke, editado em 2005 pela Edunisc.

Acabei por usar bastante o livro História da Alimentação no Brasil, do estudioso brasileiro Luis da Camara Cascudo, entre outras referências e menções.


TEXTO 1

O feijão e o sonho em Rio Pardinho

Há muitíssimas coisas interessantes no livro Memórias de Luis Panke, editado em 2005 pela Edunisc, traduzido do alemão (ou um dialeto, possivelmente) por Irma Lau e Eddhite Nuse, com apresentação do Prof. Olgário Vogt. Nascido em meados do século XIX, filho direto de emigrados da atual região da Alemanha, chegados a Rio Pardinho em 1853. Panke findou a narração de suas lembranças, reflexões, convicções e aconselhamentos – me parece que é assim que se estrutura o texto – em 1951, mesmo ano em que veio a falecer. Agricultor e empreendedor, foi um homem formado num luteranismo rígido, com laivos de teólogo cristão diletante e deslumbramentos místicos cheios de emotividade.

De seu livro, de agradável leitura, quase um romance, depreende-se vários detalhes sobre as vivências dos imigrantes e descendentes, e da formação da comunidade, fruto de uma complexa interação entre planos de colonização dos governos brasileiro – imperial, provincial e municipal (Rio Pardo, diga-se) – e da situação da população norte-européia, enfrentando uma pobreza derivada da concentração de terras, desemprego e abusos de leis ditadas pela elite político-econômica.

Diferente das narrações apologéticas, Luis Panke revela que, embora a grande solidariedade e esforço coletivo pelo bem comum, havia conflitos quase indissolúveis no seio da comunidade de teuto-descendentes, caso da escola em Rio Pardinho baixo, quando da transferência de um professor: o memorialista escreve que “essa briga – que ia se agravando e dividiu até o coro da igreja – deixou cicatrizes; a comunidade nunca mais voltou a ser como antigamente.”

O contato com a Alemanha, através do fluxo de pastores vindos da Europa, também é digno de um maior aprofundamento, a partir das informações dadas pelo autor; indica um vínculo persistente com a “pátria alemã”, incluindo os períodos dos conflitos mundiais. Panke fala, até, da prisão de um pastor durante o “tumulto da guerra”, referindo-se a Segunda Guerra Mundial – quando, por um lado, havia nas comunidades uma propaganda hitlerista notória e, por outro, arbitrariedades cretinas contra os teuto-descendentes.

Também as canalhices de alguns sacerdotes não escapam do relato, caso, em 1921, de um pastor, que foi pego furtando direto da “caixinha de contribuições para ajudar os pobres”...

A paulatina destruição da floresta, incluindo sua flora e fauna exuberantes – onças, macacos, aves diversas, raposas, veados, javalis (que andavam em bandos), etc. – se pode acompanhar pelos escritos de Luis Panke, entre outros processos históricos que acontecem a partir da instalação dos colonos na região até o início dos anos de 1950 – mencionados às vezes muito rapidamente e também nas entrelinhas, exigindo do leitor uma atenção específica e conexões com informações prévias sobre a história regional e mundial.

Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi a alimentação com feijão, sustentáculo para os imigrantes. Com certeza, o gênero fundamental nos primeiros anos de assentamento nos lotes, misturado ao toucinho e, também, à valiosa farinha de mandioca – itens fornecidos na provisão subsidiada pela administração pública provincial.

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Em suas memórias (p. 55) publicadas pela Edunisc (2005), Luis Panke narra que já em Porto Alegre, na “Casa dos Imigrantes”, onde seu avô, tio e pai – entre outros vários recém-emigrados com destino a Rio Pardinho – receberam panelas, baldes, canecas e os mantimentos mencionados, “uma pessoa fora indicada para mostrar-lhes tudo e explicar como cozinhar o feijão preto”, que poderia ser servido como pirão (mais “mole” ou mais “duro”, servindo-se, até, em “fatias”) e sopa, modificando-se a “tecnologia” de cozimento e uma pequena variação dos ingredientes (caso do uso da carne-seca, o charque gaúcho).

Perceba-se, assim, que a subsistência dos nossos colonizadores teutônicos era baseada numa dieta e culinária tipicamente brasileiras, caboclas, miscigenadas, derivadas de plantas indígenas – o feijão e a mandioca – e com agregações das formas e meios de alimentação e cozimentos dos lusos e afros-descendentes no Brasil. Pensando-se nas abóboras, batatas, milhos, amendoins, na erva-mate, que foram também se incorporando na dieta dos imigrantes e sua prole já nascida brasileira (podemos somar a isso as ervas e outros vegetais medicinais nativos, sem falar no tabaco), vemos o quanto se deve a outros povos a sobrevivência e desenvolvimento das comunidades germânicas, com sua gente chegada em meados do século XIX – e que, de resto, nunca foram permanentemente isoladas e sem a presença de membros de outras origens geográficas e culturais. E também o quanto, já pela alimentação, aqueles que, simplificadamente, chamamos de “alemães” se tornaram brasileiros desde o princípio – embora cisões, por conta de ideologias, interesses econômicos e políticos expressados por discriminações étnico-raciais, nunca tenham cessado por completo.

A própria agricultura na colônia começou pelo plantio da leguminosa logo após o primeiro desmatamento (p. 89) – usando-se (ou abusando-se) novamente de uma herança indígena, a coivara –, bem como foi “moeda de troca” dos colonos com o centro comercial da época, a cidade de Rio Pardo. Mesmo não tento um valor elevado, trocava-se um saco de feijão por um indispensável chapéu de palha, como observa Panke (p. 94).

“O feijão e o sonho”, título deste artigo, “emprestado” da famosa obra de Orígenes Lessa, quer falar da significativa “combinação” de uma planta indígena e a esperança de uma vida próspera, feliz, mais livre para os pobres emigrados; a fonte protéica do dia-a-dia e produto dos primevos comércios – tanto para os que aqui estavam há centenas (ou milhares, no caso dos silvícolas) como aos recém-chegados. Enfim, o grão tão característico e popular, em sua simplicidade e polivalência – como nos fala o genial folclorista Luis da Camara Cascudo na sua monumental História da alimentação no Brasil (editoras Itatiaia e da USP, 1983) –, possibilitou a fixação e o desenvolvimento do colono teutônico, assim como, anteriormente, possibilitou aos índios horticultores, os colonos lusitanos, os negros (em seus quilombos, inclusive nos sertões de todo o Vale do Rio Pardo) e outros grupos.

Podemos dizer que a substancial vagem dos ancestrais indígenas, criada como cultivo alimentar através de milhares de anos na América, foi fonte de energia para o trabalho e crescimento de Rio Pardinho e de tantas outras comunidades. Entretanto, os tributos à planta e ao povo ameríndio (entre outros), mesmo no “Dia do Colono”, é praticamente inexistente em Santa Cruz e região – o que se configura como um “esquecimento” lamentável, para se dizer o mínimo.


TEXTO 2

Nas memórias de Panke, outras imagens da saga dos colonos

Parece-me que há uma imagem bastante nebulosa a respeito da chegada, ou melhor dizendo, a respeito da introdução (porque se trata disso, de um projeto prévio de governos, agenciadores, loteadores de terras, entre outros) dos emigrados de regiões da atual Alemanha (e outros países) aqui em Santa Cruz do Sul e adjacências. Um certo viés historiográfico desenvolveu uma espécie de lenda sobre os nossos parentes germânicos desembarcados em Rio Pardo a partir de 1849 – após um périplo que começava às vezes em confins miseráveis da Europa central, exigindo, além de uma cavalar dose de desespero e, em igual medida, perseverança para lograr toda a sorte de dificuldades, incluindo a burocracia para transpor o que se configurava uma miríade de reinos, ducados, cidades livres, enfim, regiões que, na época – antes de 1871 –, não estavam unificadas nacionalmente pela mão de ferro prussiana (o que vale dizer, a rigor, que muitos dos nossos longínquos parentes germânicos nunca foram oficialmente cidadãos alemães).

E para desmistificar a história, uma obra que, bem analisada, acaba por ser deveras interessante é a já comentada Memórias de Luis Panke, publicada pela Edunisc em 2005, traduzida por Irma Lau e Edhite Nuse. Na narração, vemos o presidente da Câmara de Vereadores de Rio Pardo, que fazia às vezes de prefeito, recebendo e tomando ele próprio às providências para o deslocamento da nova leva de colonos recém-aportados na cidade e que partiriam a seguir para Linha Rio Pardinho. Panke, filho de imigrantes de 1853, diz que seus antepassados “Foram saudados sinceramente e o governante afirmou que foi demarcada bastante terra para eles e que certamente todos ficariam satisfeitos. Em seguida ele os levou a um grande armazém, onde teriam de guardar as coisas e permanecer por enquanto” (p. 67 e 68), complementando que “as coisas mais necessárias já estavam disponíveis e os mantimentos para cada família estavam sendo separados com muito cuidado, para que nada faltasse e que ninguém fosse esquecido.”

É também através desse presidente que ficam sabendo que “uma tropa de burros transportaria toda a bagagem dos colonizadores” (p. 69). Um tropeiro, com seus ajudantes, foi contratado – às expensas da administração, é claro – para levá-los aos lotes. Teriam que arrumar seus pertences em cestos, que se acomodavam no lombo dos animais de transporte. Os preparativos seguiram até à noite e, ainda pela manhã, tropeiros e colonos terminam as arrumações e, enfim partem.

Após as despedidas ao mandatário municipal e ao “simpático homem da venda”, fornecedor dos víveres e utensílios, “O madrinheiro tomou a ponta da caravana – é um menino sobre uma pequena égua, que tem um sininho no pescoço, tinindo com cada movimento. Atrás dele, iam todas as bestas de carga, seguidas pelos viajantes... a pé. Por último, vinha o senhor da tropa, sentado sobre um cavalo grande e forte e que cuidava da fileira em sua frente.” Já existia uma trilha a ser percorrida, iniciada, muito provavelmente, décadas ou séculos antes por índios. Após um dia inteiro de caminhada, exaustos, dormem, para retomar a jornada cedo da manhã. Nesse segundo dia, enfim, avistam casas de telhado de palha – “era o ponto final: Santa Cruz”, diz Panke (p. 71).

Nem tão final assim... Do povoado – o Faxinal do João Faria, primeiro núcleo santa-cruzense, onde já estavam instalados familiares de Faria, agregados, escravos e outros arranchados –, teriam que ser levados até seus lotes, previamente demarcados, através da picada principal já aberta – trabalho realizado, frise-se, por técnicos e outros trabalhadores pagos com recursos públicos, além de evidenciar-se a participação da mão-de-obra escrava. “Ao longo do caminho nosso grupo recebeu saudações, mas os tropeiros sempre apressavam o grupo dizendo: ‘Depois vocês terão bastante tempo para conversar.’” Luis Panke em suas memórias (Edunisc, 2005) diz que, quando a última família foi deixada no lote destinado, os homens que lhes guiavam desde Rio Pardo, saudaram com um “‘Deus vos acuda’, montando seu animais e indo embora” (p.72). Com certeza, dias depois, voltariam com um novo grupo de colonos.

“Todos calados, um perto do outro, juntos de suas trouxas, cujo conteúdo foi ganho de presente, pisaram com os pés em sua própria terra, o maior presente que receberam. Esse pedaço de terra era deles, era sua propriedade no meio da floresta densa e enorme”, que não tardaria a ser derrubada e, seguindo técnicas desenvolvidas há séculos por indígenas, cultivar o feijão, primeiro alimento e “moeda de troca” – além do tabaco, outra planta típica dos silvícolas americanos, que acabaria desencadeando um ciclo de expansão econômica de enorme vigor na região.

Assim é que, nas linhas e entrelinhas dessas Memórias de Luis Panke, cheias de possibilidades de análise, fica exposto a complexa teia de acontecimentos e a contribuição de inúmeros fatores e gentes no assentamento dos colonos teutos, cuja honra venerável não precisa descambar para uma ideologia de população vitimizada por um Brasil padrasto. Não chegam feitos deuses nórdicos, e, sim, quase todos, como parcelas da massa de deserdados europeus do século XIX, contando com subsídios estatais brasileiros diretos e indiretos. Se houve injustiças e frustrações de promessas e até perseguição eventual, também não faltaram atos de boa vontade e uma paulatina integração – mesmo à revelia de intencionalidades, como alude Jean Roche em seu A Colonização Alemã e o Rio Grande do Sul, publicado em 1969 –, forjando esta brasilidade sul-riograndense onde, em meio a uma tremenda churrascada, há alguém brindando aos convivas com um esfuziante “Prosit, gauderiada!” (Obs.: E não seriam os colonos germânicos no Brasil uns “desgarrados do pago”? Uns verdadeiros gaudérios, no sentido de estarem aqui fugindo do tacão de patrões e leis que lhe tolhiam a existência em paz e dignidade?)


Comentários complementares e derivações:

***A edição que li da obra O feijão e o sonho, de Origens Lessa, foi publicado pela editora Ática em 1981, dentro da Série Vaga-Lume, dirigida a adolescentes e jovens – ficando famosa, porque todas as escolas dispunham em suas bibliotecas (Menino de asas, Cem noites tapuias, Éramos seis, O escaravelho do diabo, Spharion, etc.) e eram “recomendados” pelos professores, suponho, pela proposta de oferecer uma “literatura moderna, para o jovem de hoje (anos 80!)”. Só vim a ler agora, em abril de 2006. Gostei bastante, mas duvido que gostasse em 1981. Fala das agruras de uma família onde a mulher dona de casa frustrada desespera-se com “o feijão de cada dia” que o marido, sempre aluado em literaturas, não consegue prover minimamente. O “feijão” é o pé no chão, a necessidade básica, a preocupação primeira da mulher, Maria Clara, “materialista”, convencional; o “sonho” é o mundo fantasioso, escapista, “transcendental” onde vive o inadaptado marido, Campos Lara, o poeta de apelido Juca.

***No História da alimentação no Brasil, de Luis da Camara Cascudo, publicado em 1983 pela Itatiaia e Editora da USP, fala-se do feijão. Há toda uma parte dedicada ao assunto no capítulo Elementos básicos (que inicia na página 489 – segundo volume):

“(...) As variedades de feijão, nos vários espécimes de leguminosas papilionáceas, tinham entre os indígenas a designação genérica de cumandá (...). O sabor capitoso dos feijões brasileiros conquistou o paladar português. (...) O feijão, disponibilidade ativa e prestante, de cultura facílima, tão cômoda (...) brotando ao redor das casas, impunha-se ap passadio que as povoações transformavam, fixando o indígena nas labutas diárias junto ao colonizador [luso] e sem tempo útil para colheitas distantes de outras plantas de sua tradicional ementa [a dieta portuguesa]. O feijão seria tão fixador, no plano geográfico, quanto a mandioca (...). O brasileiro, filho de portugueses, ameríndios e africanos, foi o consumidor-propagandista do feijão. Os pais tiveram uso, intermitente e acidental, valorizado, ampliado, enobrecido no nível do costume, pelo filho. (...) O plantio do feijão acompanhou o ‘sitiante’ que tomava posse das sesmarias setecentistas nos sertões do Nordeste. Levava um alimento todo-ano, dispensando a vigilância dispendiosa de tempo para sua obtenção. (...)”

Além do feijão, a farinha de mandioca foi fundamental no Brasil, já muito antes da chegada dos Panke em Rio Pardinho, que se serviram dos dois, junto com o toicinho e o sal, para sustentá-lhes nos primeiros tempos – mas que se mantém no cardápio da “colônia” até hoje. Diz Câmara Cascudo:

“Poderíamos dizer que o binômio feijão-e-farinha estava governando o cardápio brasileiro desde a primeira metade do século XVII (1600 – p. 497).”

“Todos os naturalistas estrangeiros que percorreram o Brasil desde o princípio do século XIX mencionam o feijão como essencial, típico, apresentado, diariamente, no Sul, no Centro, no Nordeste. O século XIX revela que o ecúmeno feijoeiro se alargara, tornando indispensável, acompanhando o desenvolvimento da população, já um prato nacional, inseparável da farinha, inevitável em todas as mesas.” (p. 500)

E foi assim também em Rio Pardinho!

***Sobre o chimarrão, ao falar sobre influências na alimentação brasileira dos imigrantes alemães, Câmara Cascudo surpreende-se com a adoção apaixonada pela bebida por parte dos teutos no sul do Brasil. Ele cita uma passagem do médico e estudioso alemão, antes comentando que “Contra toda a lógica formal [dos costumes germânicos], o mate, o chimarrão, mereceu um hino de simpatia calorosa de [Robert] Ave-Lallemant [que escreveu Viagem ao sul do Brasil no ano de 1858, tendo passado, inclusive, por Santa Cruz, sendo sua obra um subsidiado e inspirado um personagem do livro A valsa da medusa, de Valesca de Assis – esposa do romancista Assis Brasil]:

Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, estima e sacrifício; tudo o que é elevado e profundo e bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum... É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação”.

***Camara Cascudo ainda comenta que, diferente de italianos, os alemães no Brasil “Ficaram, percentagem notável, mais depressa brasileiros na alimentação que os italianos ou sírio-libaneses. As várias cozinhas existentes na Alemanha, da Renânia à Prússia Oriental, da Baviera às terras bálticas, não ofereceram uma frente única defensiva ao amavio aculturativo, poderoso no fator da necessidade. (...)”.

Citando Emílio Willemns, Camara Cascudo faz observar: “‘Quanto às bebidas, a cachaça acrescentou-se, por toda parte [nas localidades de assentamentos teutônicos], à cerveja que cada região produz [além do chimarrão, como já mencionado].’”

***Numa indicação do intercruzamento étnico-cultural antiguíssimo e permanente no desenvolvimento da humanidade – e que não poderia ser de outra forma em Rio Pardinho! –, Camara Cascudo, ao falar da presença e importância do toucinho (p. 239) “nas comidas negras” brasileiras “desde o princípio do século XIX mas certamente vulgarizado na centúria anterior, foi uma influência portuguesa”. Mas complementa a informação: “[O toucinho] Era uma constante na comida lusitana do século XVI, vinda imemorialmente dos povos germânicos [vejam só!!] povoadores da península ibérica (...)”. O toicinho português do século XIX, que foi outrora herança dos povos germânicos antes do século XVI, volta (ou continua), através de brasileiros, a ser dado como sustentáculo alimentar aos imigrantes teutos em Santa Cruz do Sul a partir de 1849.

***Noutra indicação de “compartilhamento inter-étnico-cultural”, assim como os imigrantes em Rio Pardinho, os “imigrantes forçados” da África também tiveram na mandioca (e depois também no feijão) o seus sustento alimentar: “Antes de pisar terra do Brasil vinham comendo mandioca”, diz Cascudo (p. 105).

“Há quase cinco séculos a farinha continua mantendo o prestígio no crédito popular. (...) é a camada primitiva, o basalto fundamental na alimentação brasileira”, comida de todos os sertanejos – não excluindo os de Rio Pardinho!

Com farinha se faz “o legítimo pirão brasileiro”, com suas “nuances”, dependendo do acesso momentâneo aos ingredientes. Luis Panke conta (p. 74) que seus familiares, recém descarregados nos lotes, aprenderam, com colonos teutos chegados poucos anos antes à região de Rio Pardinho, a fazer um pirão muito simples e rápido feito de toicinho refogado, sal e água ferventes, onde se deitava a farinha de mandioca – todos ingredientes ganhos do governo provincial, como rancho básicos aos emigrados. “Técnica portuguesa com material brasileiro, o pirão é uma obra-prima nacional”, empolga-se Camara Cascudo (p.120).

***O “Dia do Colono”, 25 de julho, com já mencionado em outros artigos, não é o “Dia do Agricultor”. A data se refere ao início da colonização germânica no RS, em 1824, na região de São Leopoldo. Mas já é tradicional, em municípios como Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires, comemorar-se e associar-se a data ao trabalhador rural – como se os agricultores fossem “apenas” os teutos e seus descendentes, “esquecendo-se” de que na região sempre houve – até bem antes da introdução dos emigrados germânicos – agricultores (e agricultoras!) com outras origens e referências étnicas.

***A coivara é, em verdade, uma fase de um tecnologia e conhecimento agrícolas muito mais vasto e complexo por parte dos povos indígenas. Em artigo publicado na Revista Geográfica Universal (Bloch Editores), de maio de 1988 (nº 162), a antropóloga Berta G. Ribeiro, falando sobre a cultura da tribo Kuikúro, que vivem no Parque Indígena do Xingu, desde a escolha da área a ser preparada para o plantio, seguido um conhecimento impressionante da composição vegetal, do solo e geografia locais, até o processo minucioso da derrubada de árvores e queima, de forma a ter o máximo aproveitamento da área e minimizando agressões à floresta. Berta diz, por exemplo, que “os Kuikúro sabem quando é chegada a hora da queima pela aparição da constelação do Pato do lado oriental do céu, antes do raiar do Sol. E ainda pela posta de ovos de tracajá [...]”. Ou seja, existe aí o saber astronômico e da correlação entre os fenômenos do ecossistema. “As cinzas aumentam imediatamente a fertilidade do solo, em alguns casos dobrando a quantidade de sais solúveis e triplicando ou quadruplicando seu teor de potássio, cálcio, magnésio, etc.” Ao final do artigo, a antropóloga diz que é “demonstrado a complexidade do saber indígena no que se refere a conhecimentos pedológicos, climáticos e à genética das plantas.”

***Uso cerimonial de fermentados alcoólicos pelos índios (noutro momento, já mencionei o tabaco, outra planta que pode ser arrolada na etnobotânica americana, descoberta, cultivada, beneficiada – secagem das folhas, manufatura de “charutos”, desenvolvimento de cachimbos e outros meios de uso – por povos “pré-colombianos”, de uso cerimonial e medicinal, apropriada pelos europeus e transformada em mercadoria e produto de uso vulgar, generalizado e compulsivo):

Na obra do genial folclorista Luis da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, documento dos mais vastos e interessantes sobre a cultura, história e sociedade brasileiras, há um capítulo (p. 143) tratando das bebidas usadas em rituais festivos pelos índios brasileiros. Cascudo cita o alemão Hans Staden, que conviveu com nativos por volta de 1554:

“As mulheres é que fazem também as bebidas. Tomam as raízes de mandioca, que deitam a ferver em grandes potes, e quando bem fervidas, tiram-nas e passam para outras vasilhas ou potes, onde deixam esfriar um pouco. Então as moças assentam-se ao pé a mastigarem as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha à parte. Uma vez mastigadas todas essas raízes fervidas, tornam a pôr a massa mascada nos potes que então enchem de d’água e misturam muito bem, deixando tudo ferver de novo. Há então umas vasilhas especiais, que estão enterradas até o meio e que eles empregam, como nós os tonéis para o vinho e cerveja. Aí despejam tudo re tampam bem; começa a bebida a fermentar e torna-se forte. Assim fica durante dois dias, depois de que, bebem e ficam bêbados [tal expressão talvez não seja a mais adequada, devida a sua carga pejorativa]. É densa e deve ser nutritiva.”

Além da mandioca, também se usava o milho e outras plantas e partes de vegetais, como ananás e raízes de certa pimenteira, todas obedecendo ao processo básico – usado por diversos grupos aborígenes do mundo todo, do Peru à Austrália – de desencadear a fermentação do produto pela mastigação: “Na diástase da saliva a ptialina transforma o amidos das raízes e dos frutos em maltose e dextrina, provocando a sacarificação, resultante dos ácidos orgânicos sobre os açúcares.”

A repugnância e paulatino desuso do processo de fabricação dessas bebidas pela mastigação. Cascudo acredita “que à nossa vã filosofia ‘científica’ escapam razões milenares e secretas de certos atos da [assim chamada] vida primitiva. E mesmo da vida popular contemporânea. (...) A saliva está neste plano, mágico, histórico, universal no espaço e no tempo.”

Outra observação fundamental de Cascudo: “Beber por desfastio, divertimento, desejo íntimo, não existia e quase não existe entre os aborígenes. Indígena isolado, bêbado, é contágio de ‘branco’. Bebida é sempre função grupal, solenidade com motivação indispensável.”

As “caiuagens” [consumo coletivo do fermentado] não era algo do dia-a-dia, mas fazia parte da rotina social dos grupos. A bebida “era cerimônia especial e distinta”. Durante esse período, os indígenas abstinham-se de alimentos. Nas refeições cotidianas, quando se sente necessidade, bebe-se água pura, diz Cascudo.

Cascudo, ainda neste capítulo, fala do caápi, um cipó – ou melhor, a “infusão da casca previamente socada num pilão especial, mal diluída em um pouco de água” – que “produz um sumo amargo, servido depois das amplas bebidas coletivas, promovendo sonhos, excitações, semidelírios, no alto do rio Negro e mais freqüentemente no Uaupés. (...) O uso do caápi parece ter sido influência incaica, onde dizem ayauasca e lluasca.”

***Sobre a feijoada, J. A. Pinheiro Machado, em sua crônica Desilusão na Panela, publicada em Zero Hora de 19/09/2008 (p. 2), diz que, ao contrário do que costumamos pensar, este prato típico brasileiro não tem origem no nosso país, mas no norte de Portugal, se espalhando pelas colônias lusitanas pelo mundo, sendo também “prato nacional” em países como o Timor Leste, na Ásia.

Escreve Pinheiro Machado: “A feijoada nasceu do hábito português de colocar carnes para cozinhar junto com o feijão. A inspiração é nitidamente européia, do cassoulet francês, que talvez esteja na origem dos cozidos portugueses. A praticidade da mistura, com ingredientes fáceis de estocar, conservar e transportar – e também simples de preparar – estimulou a propagação da feijoada pelas colônias portuguesas, ganhando adaptações no Brasil, em Moçambique, Goa, Macau, Timor Leste e Cabo Verde. As variações dessa culinária comum foram espalhadas pelos navios lusitanos, que durante quatro séculos permutaram receitas e ingredientes entre colônias, como lembra a antropóloga americana Cherie Hamilton.”

De novo, através do feijão, dos seus cozidos, nos unimos a África (e Ásia) lusófona, também demonstrando a complexidade, as ramificações, a múltiplas imbricações étnico-culturais das e nas comunidades, caso de Rio Pardinho – onde europeus-do-norte, no processo da imigração/colonização, acabam comungando com histórias, tradições, hábitos diversos.