24 de nov. de 2011

Oktoberfest, álcool e crianças

Como uma “festa família”, acho que os organizadores da Oktoberfest de Santa Cruz do Sul deveriam tomar mais cuidado com a apologia ao consumo de álcool potável, droga que, sabidamente, e não raro, traz inúmeros problemas e prejuízos para o consumidor e para a comunidade. Não é por nada, por exemplo, que a legislação veda a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos de idade, tal sua periculosidade comprovada por inúmeros fatos. Doenças graves, dependência química, acidentes graves, conflitos traumáticos estão diretamente ligados à ingestão do álcool, onde entram, com destaque, o chope e a cerveja.

Assim é que ostentar choperias ambulantes, ofertar graciosamente e empunhar, sorrindo, canecões do fermentado, ingeri-lo na rua aos borbotões em um desfile alegórico onde há milhares de crianças e adolescente assistindo (e até participando das “alas”) – e, ainda por cima, no caso de 2011, onde o tema dos carros alegóricos eram contos clássicos da literatura infantil mundial – é algo com muito poder educativo (deseducativo?). Ou seja, e em suma, se está a dizer que o consumo de bebida alcoólica é bom e pode ser praticado livremente pelas pessoas.

Não é por ser lícito – até certo ponto, porque há vários impedimentos já mencionados ao consumo, caso das punições da legislação de trânsito – que se torna tranquilo beber em público, num evento que os pais levam seus pimpolhos, e onde estão, queira-se ou não, aprendendo coisas – uma delas: beber é sinônimo de festa, alegria, cultura, diversão, sociabilidade etc.

Qualquer substância psicoativa, como o álcool, pode ser, como se diz, “porta de entrada para outras drogas”. Quando há todo um alarme e esforço da comunidade em barrar o consumo de crack, cocaína, maconha etc., um desfile que faz (ou acaba fazendo) apologia à bebida alcoólica é algo totalmente contraproducente; é contraditório ao esforço de evitar-se o uso abusivo de drogas. Já não basta o alto consumo dentro da festa, se externa isso na um desfile aberto, focado nas famílias, nas crianças.

Acho perfeitamente plausível – além de positivo em vários sentidos – se abolir a ostentação do consumo do álcool no desfile da Oktoberfest, junto com a sua minimização como atrativo da festa – algo que nas últimas edições (desde 2003, por aí, já vem ocorrendo, trocando-se o chope por cucas e instrumentos musicais nas mãos dos bonecos Fritz e Frida – embora permaneçam lá no trevo de entrada da cidade, no Acesso Grasel, convidando os motoristas a tomarem um canecão...). Talvez os grandes fabricantes, fornecedores e comerciantes não fiquem contentes, mas, para a comunidade, seria menos um estímulo drogadição alcoólica.

Não sou “contra o álcool” e gosto de tomar um pouco de vinho, cerveja e aperitivos em alguns momentos. Mas é preciso muita consciência: não estamos lidando como suco de groselha natural. Por seus efeitos nefastos, chope não é algo para se “brincar”, se usar impunemente, ostentar na rua, na frente das crianças e jovens sem que haja consequência no futuro próximo ou distante. Antes de qualquer programa “antidroga”, quem sabe se faz essa reflexão, para não cairmos em ações inócuas; porque “é o exemplo que vale” – não palavras de ordem do tipo “Crack nem pensar”; muita mais eficiência tem a mensagem “Tome chope a varrer” exemplificada num desfile de rua em pleno domingo de manhã na rua principal da cidade...

10 de nov. de 2011

Escárnio e ignorância


Voltando ao assunto da desclassificação de pessoas e sua transformação em objeto de chacota por conta do uso de palavras e expressões que aprenderam desde a tenra infância, por residirem e se socializarem (e adquirirem o seu linguajar) em comunidades mais distantes – em termos físicos, econômicos e culturais – da “boa sociedade”, segue abaixo um artigo publicado na revista Língua Portuguesa (Editora Segmento, agosto de 2011).

Muitas vezes não nos flagramos do quanto somos, nós mesmos, ignorantes aos aspectos da nossa língua e da linguagem humana em si e o seu desenvolvimento social ao longo do tempo. Ao rirmos de alguém que disse “frauta” ao invés de “flauta”, podemos não saber que o próprio Camões, autor do clássico Os Lusíadas, grafou em sua obra (e devia falar) assim mesmo: “sonoras frautas”. Ou seja, muitas e muitas palavras consideradas mais do que “erradas” – consideradas uma “aberração”, um “escândalo” (carça, bassoura, trabesseiro etc.) – podem ser vistas como formas de falar tradicionais, que se mantiveram em alguns grupos e hoje são variantes do que se configurou como “a língua culta”. Há nesses falares algo de uma riqueza histórica, social e linguística, que a avaliação superficial não consegue se deter, porque condena taxativamente e sem base maior.

O escárnio, o sorriso debochado e superior é um riso preconceituoso e, no final, atesta a ignorância sobre a língua portuguesa em sua complexidade.

*E ontem mesmo fiquei pensando que, além de tudo, o preconceituoso priva-se de ampliar o seu vocabulário com expressões e fonéticas “alternativas”; a pessoa nem cogita o porquê o outro fala daquele jeito “errado”, já o descarta; não cogita que existe uma história da língua portuguesa que vem de séculos e que continuará por outros tantos em transformação, com múltiplas influências e formas de manifestação. O preconceituoso é tão autocentrado, tão zeloso da “correção”, que se fecha a tudo que não seja espelho e norma.

**Uma colega me passou um verso do Oswald de Andrade (Vício na Fala) que diz assim:

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados

Não é bacana isso? Muito boa a conclusão dele. O que importa é a comunicação. A norma, a “correção” têm seus espaços, mas o que importa é que os telhados são feitos.



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17/08/2011

A tradição da "frechada"

Tendência das línguas românicas, rotacismo não é atraso linguístico, como se acredita

Contam que Probo (Marcus Valerius Probus) foi um sujeito que compilou e listou 227 palavras da língua latina com erros corriqueiros atribuídos à fala ou variedade popular dos plebeus (sermo plebeius), do povão ou - diriam outros - da "gente diferenciada", que compõem o Appendix Probi (Apêndice de Probo). Para servir de cartilha a quem quisesse escrever ou falar conforme o padrão da língua (o dito latim clássico) do século 4 ou 3 antes de Cristo, o autor do apêndice coloca a forma supostamente correta ao lado da "equivocada". No estilo receita: [diga/escreva] x não y.

Tudo isso, autor e data, é fruto de inferências. E, como tal, suportam interrogações, dúvidas e contra-argumentos. O que é fato? O apêndice ou lista ou anexo existe. E é considerado um dos documentos pelos quais se pode ter a descrição do que seria o latim vulgar, falado, popular ou corrente no império romano. É nessa variedade, dizem todos os estudos diacrônicos, que as línguas latinas ou românicas, dentre elas o português, têm suas bases.

Antepassados


A piada é que muitas formas tachadas como erradas são hoje as consideradas corretas. Eis alguns casos: masculus non masclus - donde veio "macho"; ansa non asa; oculus non oclus - donde veio "olho"; mensa non mesa; rivus non rius - donde veio "rio"; viridis non virdis - donde veio "verde", e por aí vai. Um exemplo, que mexe até com "verdades" politicamente incorretas, tem a ver com o rotacismo: aquela alteração fonética que consiste em se realizar r no lugar de l, como em "crasse", "frauta" e "pranta" ("classe", "flauta" e "planta").

É comum haver pressa em dizer que esse processo fonológico ou metaplasmo, dentre outros, resulta de nossa herança linguístico-cultural alicerçada nas culturas e línguas indígenas e africanas. Na música Tiro ao Álvaro, de Adoniran Barbosa, vale destacar a ocorrência do rotacismo nos trechos "frechada do teu olhar" e "bala de revórver". Essa troca não é exclusiva do dialeto caipira paulista. Pode ser encontrada em todas as regiões brasileiras e está mais relacionada a variáveis ou aspectos sociais, como a escolaridade do falante, do que a motivos dialetais circunscritos a uma determinada região.

A ocorrência de rotacismo, no entanto, é destacada pelos historiadores da língua desde o latim. Representa, assim, uma tendência românica. No apêndice há pelo menos um caso (flagellum non fragellum), que, já naquele momento, estava listado como erro. E também é registrado em diferentes fases históricas do português. Isso denota que pode se tratar de um caso de manutenção e não de inovação do português brasileiro.

Eis dois exemplos de autoridade.

Em versões de Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões (1524-1580), que mantêm a ortografia das primeiras edições, encontramos "frautas" no lugar de "flautas", no verso 6, estrofe 64 do canto 9°. E, da mesma forma, no Auto da Barca do Inferno (1517/19), de Gil Vicente (1465?-1537), está escrito "berzebuu" (que se indentifica com "revórver") em vez de "belzebu" no verso 12. Quer dizer, a ideia de que foram os índios e negros, que provocaram a vibração de l no nosso jeito caipira de falar, não passa de lenda e de muito labéu étnico e social.

É difícil contestar que algumas características encontradas em nosso diversificado modo "brasileiro" de falar - reconhecido e evidentemente distinto do modo "português europeu", "africano" e "asiático" de falar - não podem ser tratadas como fenômenos surgidos exclusivamente em terras brasileiras por conta da nossa história social: contexto em que indígenas e africanos falavam o português, introduzindo nele realizações sonoras, lexicais e sintáticas nunca ditas e ouvidas ou escritas e lidas antes.

Não só brasileiro

A ideia equivocada de inovação advinda da propagada miscigenação brasílica (índio, branco e negro) é frutífera não só em se tratando de fenômenos linguísticos, estritamente. Certo é que, por meio de manuscritos e impressos de tipologia e datação variadas, podemos trazer, para o presente, elementos da nossa vida social do passado e rememorar nosso itinerário cultural e linguístico. Memórias capazes de desvendar o que, numa leitura célere, asinha, pode parecer inteligível para muitos de nós. E possibilitam a (re)interpretação de conceitos e preceitos ditados às vezes como verdades absolutas.

Essa constatação ganha cores e porosidade se concentrarmos a reflexão no nível vocabular da língua. Porque a investigação nesse patamar semântico-lexical nos leva mais longe: ao nível cultural, trazendo à tona provas ou suspeitas de que muitos aspectos da nossa cultura - com seu "jeitinho" de ser ou de resolver as coisas - não devem tributo à mistura branco, índio e negro, como muita gente insiste em nos imprimir a ferro em brasa...

Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida é professor pesquisador livre-docente na área de filologia e língua portuguesa da USP, cnpq

FONTE: http://www.revistalingua.com.br/textos.asp?codigo=12376