30 de out. de 2012

Alienação tecnológica e a "foto" de Jesus

Esses dias fiquei perturbado pelo recebimento de um daqueles e-mails "TU DEVES REPASSAR AGORAAAARGHH!!!”, sob pena de te acontecer alguma desgraça. Meu “desassossego” ficou por conta de quem estava me enviado aquilo: uma pessoa com doutorado e professor universitário... Vai o comentário que fiz na ocasião:

Começa por dizer que a ilustração em anexo é uma foto, quando, obviamente, é um desenho, retratando Jesus Cristo conforme o estereótipo – um homem branco, magro, de cabelos compridos, com um rosto expressando dor, tendo na cabeça a terrível coroa de espeinhos. Interessante que essa figura, que representa o amor incondicional, a bondade encarnada, a suprema compaixão, aquele que se dá pela salvação da humanidade... pois bem, caso tu não repasses tal figura, desencadeará uma grande desgraça na vida do preguiçoso, desatento ou cético internauta...

Referências como a de ter aparecido "até no Fantástico" (o programa da Globo), um presidente da Argentina (que teria sido “punido” por não dar encaminhamento a mensagem, morrendo o seu filho), uma pessoa chamada Alberto Martines (imaginei-o um mexicano ou costa-riquenho)... a referência a "o poder Ele tem", "milagres", ganhar na loteria (como “recompensa” por repassar a mensagem), o prazo de "13 dias"... tudo isso me espanta pela superstição, o obscurantismo envolvidos; a crendice mais simplória e, aí é o ponto, compartilhada ao que parece, por pessoas academicamente especializadas, profissionais bem remunerados da área da educação superior... Não, não é exatamente (ou somente) uma crítica: é uma vontade de entender o que está acontecendo... Me parece, também, um contradição – algo que se choca ao propósito do saber desenvolvido em universidades, no ensino e pesquisa acadêmicas – que, acho eu, justamente se estabelece para não sermos submetidos pela irracionalidade. (Mesmo que se possa dizer que o humano seja por natureza 98% irracional, e coisas como a religião não sejam necessariamente ruins, um mal, mas estratégias de conforto e compreensão do mundo aparentemente caótico em que vivemos. Tem um cara que se chama Michael Shermer, articulista na Scientific American [já vi uns pedaços de palestras dele no Youtube e estou lendo um dos seus livros] e editor de uma outra revista famosa, a Skeptic Inquirerer. Bem, ele diz que "sua intenção não é subestimar as pessoas que acreditam em 'coisas estranhas', mas sim entender por que elas acreditam" naquilo, sem cair num "dogmatismo científico". Eu estou por aí.)

Outro ponto que também me surpreende, aí de um modo mais geral, é a nossa “alienação tecnológica” – e que levam pessoas a repassar mensagens que julgo estapafúrdias. Usamos inúmeros e sofisticados artefatos tecnológicos – eletrônicos, computacionais e mecânicos especialmente – sem que tenhamos uma noção ao menos básica da complexidade dos conhecimentos e habilidades humanas consubstanciadas num ato, por exemplo, de enviarmos uma mensagem via internet, anexando uma imagem ou vídeo; ou no ato de atendermos nossa mãe no celular, enquanto estamos nos deslocamos no elevador do aeroporto, onde embarcaremos numa viagem sem escala em um avião Airbus A380 de Porto Alegre até São Paulo... subjazem quase completamente esquecidos aí uma gama de fórmulas físico-matemáticas, química fina aplicada e de tantos outros conhecimentos gerados pela metodologia científica; parece que nos mantemos como crianças crédulas, despachando mensagens de um conteúdo confuso e do maior obscurantismo, da maior desconsideração ao que já foi produzido pelas diversas ciências – incluindo as humanísticas (caso da sociologia, ciência política, antropologia etc.)...

Uma ligeira leitura do texto deveria ser suficiente para alertar-nos sobre sua precariedade de sentido e conteúdo. E onde se esperava a sensatez, por se tratar de pessoas que trabalham em uma universidade, reduto da reflexão metódica e exaustiva, o que se vê, porém, é a mais rasa credulidade...

Há em nossas vidas uma crucial contradição, resultado do uso alienado, do “analfabetismo científico”, que nos mantém apenas na superfície, nas “interfaces” dos aparatos tecnológicos  – o teclado do celular, da tela do computador, do controle remoto da TV, da direção do automóvel, da poltrona do avião, do creme vegetal sobre a fatia do pão de sanduíche etc. parece que não temos estímulo para entender “o que está pro trás”, qual a “magia” que está ali... Por certo isso exige um certo esforço intelectual (talvez aí esteja um dos nós da questão...), mas tal empenho revelaria que não há magia propriamente, mas um preciso funcionamento derivado de um enorme esforço acumulado de saberes.

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