19 de dez. de 2013

O apartheid também é aqui


“Choremos Mandela, mas não esqueçamos as denúncias de Milton Santos [fotoacima], Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes e tantos outros/as.”

Aproveitando o período [texto escrito na semana passada] ainda de manifestação de condolência e homenagens ao Mandela, vou colar aqui abaixo uns comentários meus. Faço isso para registrá-los mais explicitamente, já que, observei tristemente, alguns que postaram suas condolência e aderências às ideias e posturas “mandelaianas”, pelo jeito, não gostaram da minha manifestação, postada como apoio e colaboração. Fico pensando por qual razão, mesmo, se fez a exclusão? Há muitos limites ao debate. Falar em África DO SUL, lá do outro lado do mundo, tudo bem; mas em Santa Cruz DO SUL, aqui do meu lado? Aí não é bem assim... Sinto, sendo bem sincero, também, uma certa hipocrisia, um “aproveitar a ocasião” e “dizer palavras bonitas”, para “ser bacana”. Mas ir muito adiante, “concretizar” ou enxergar a própria casa, aí não, né? Há medos. E eu não vou dizer que sou imune.

Segue o que anotei em 06/12:

Que a gente se inspire em Mandela e façamos todos os dias nossa luta contra os “apartheid” que ainda vigora no Brasil e, óbvio, em Santa Cruz. A população negra é vitimada pelo racismo e muitos dados demonstram isso cabalmente, basta ver as médias salariais e os cargos/funções que a esmagadora maioria das pessoas negras ocupam. Fruto da mobilização, temos muitos avanços, caso das políticas como as cotas em universidades, que tentam acelerar uma justiça social, ferida pelos quase 400 anos de escravidão brasileira, quando os africanos e afrodescendentes foram desumanizados, tornados “objetos”, animais de ganho, com o apoio institucional massivo, incluindo igrejas e ciências. A abolição ainda não foi completada, porque “atirou” uma massa de pessoas ao “Deus dará”, após gerações e gerações trabalhando de sol a sol, sem indenização socioeconômica alguma e, suprema sacanagem, marcados pela discriminação (vagabundos, inconfiáveis, intelectualmente inferiores, libidinosos etc.). Enfim, choremos Mandela, mas não esqueçamos as denúncias de Milton Santos, Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes e tantos outros/as. Abraços!


Também anotei em outro espaço de debate (felizmente, mantido) algo bem semelhante:

Bom debate [sobre artistas que representam o Brasil na recente cerimônia da Fifa na Bahia]. Mas acho que não é tão simples assim, tipo “qualquer um pode representar o Brasil, que vai ficar bom”. O racismo é coisa séria e precisa de uma abordagem com menos senso comum e mais Florestan Fernandes, Lilia Schwarcz, Milton Santos e o Fernando Henrique Cardos, o sociólogo do tempo do “Escravidão no Brasil Meridional”; mais informações estatísticas, estudos bem abalizados, a partir de fontes fidedignas (IBGE e Ipea), para não apelar a sentimentalismos e vir com dados técnicos. Somos um país racista. Mandela morreu, todo mundo chorou, mas após condolências até do pessoal da KKK, tudo parece voltar a “normalidade” do apartheid nosso de cada dia. Temos um problema não superado. Ou não? Exemplo: Até dois anos atrás, as turmas de medicina da UFRGS, desde 1898 (mais de 110 anos), não tinham praticamente estudantes negros, muito menos, negras (precisou chegar as cotas). E por que isso de não ter negros/as? Por que os pretos são intelectualmente inferiores? Mesmo que alguns tenham vontade de afirmar isso, a verdade é que (vou me repetir outra vez, perdão) se trata do produto social dos quase 400 anos (quatrocentos anos) de escravidão – sistema que gerou a riqueza, sustentou o país e subsidiou projetos de colonização europeia, como em Santa Cruz do Sul (enquanto os mesmo trabalhadores, em 1888, são atirados “a deus dará”, sem terras, sem indenização alguma e com a pecha de “vagabundos” após gerações de relho, suor e sangue – e toda a desumanização que tal regime implicou, fazendo das pessoas afrodescendentes animais comercializáveis, subespécie, coisas. Então, mesmo considerando que possa haver “histeria” por um lado, há também algo importante sendo dito quando se substitui “morenos” por loiros. Não se estará tentando reafirmar uma brancura num país de maioria esmagadora negra e mestiça – até há pouco tão invisibilidade em novelas e comerciais, que se pensava algumas partes do Brasil como uma espécie de Reino da Dinamarca?? Óbvio que algo de podre sempre houve aí...

(...)

Não existe comparação entre o trabalho, sim, duro e a vida sofrida de imigrantes italianos e alemães (algumas levas recebendo 72 hectares de terra e outros subsídios governamentais aqui mesmo em Santa Cruz em 1849), e o trabalho escravo e tudo que ele implicou e implica até hoje. Ser escravizado, ser tido como escravo é uma situação mais do que humilhante – é aviltante da humanidade do ser, concebido como um animal comercializável. Houve a tentativa de destruição de qualquer vínculo cultural e total submissão ao racismo produzido pela igreja, estado e outras instituições “de pessoas de bem”. Somente a resistência negra e a rebelião na forma quilombos, sociedades secretas, sincretismos, grupos de sabotagem e, em último caso, suicídio, não deixou milhares e milhares de pessoas serem moral e economicamente esmagadas – embora algumas foram definitivamente destruídas em sua dignidade. Perto do que passaram os africanos e seus descendentes escravizados, italianos e alemães foram imensamente privilegiados.

E uma observação que fiz em outra postagem sobre Mandela: Heroísmo sem máculas, coisa difícil. Humanos, por definição, imperfeitos, né? O mito, como guia, é bom (ou pode ser bom), como disse o Jeferson. Mas se vamos a fundo... decepções nos esperam quase sempre.


*Milton Santos (foto) foi um dos maiores geógrafos brasileiros e do mundo. Intelectual independente (“outsider”, como ele mesmo dizia), propôs entendimentos sobre a sociedade e a economia que inspiram uma visão crítica, denunciando poderes opressores. Perguntado, disse que ser negro era difícil, pela história do povo africano no Brasil, assim como ser intelectual, porque pensar e fazer pensar não é algo que agrade há muitos.

**Existe um documentário muito bacana sobre Milton Santos. Fica uma dica, que dá uma panorama da sua vida e pensamento:

http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM&feature=youtu.be

A perigosa ideia...


“Este livro, então, é para os que concordam que o único significado da vida com o qual vale a penas se preocupar é aquele capaz de suportar nossos esforços para examiná-lo. Os outros podem fechar o livro agora e sair de mansinho.”

O livro, no caso, não é exatamente “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, mas tem tudo a ver, e serviria muito bem como uma de apresentação para a obra-prima do naturalista britânico. O trecho acima está em “A Perigosa Ideia de Darwin – A Evolução e os Significados da Vida” (Rocco, 1998), do filósofo Daniel Dennett. Uma dos livros de apoio que pode enriquecer o debate sobre, sem exagero, a obra mais impactante – e ainda impactando enormemente – a existência dos seres humanos no planeta.

No mesmo “Capítulo Um – Diga-me Por Quê”**, Dennett avalia:

“Sempre que se fala de darwinismo a temperatura sobe, porque há muito mais em jogo do que simplesmente fatos empíricos sobre a evolução da vida na Terra, ou a lógica correta da teoria que explica esses fatos. Uma das coisas mais preciosas que está em risco é a visão do que significa perguntar, e responde à questão, ‘por quê’? A nova perspectiva de Darwin subverte várias hipóteses tradicionais, abalando nossas ideias-padrão sobre o que deveria valer como resposta satisfatória para essa antiga e inevitável pergunta.”

O filósofo alerta para os cuidados na análise, evitando tropeços comuns entre “fãs exaltados” e “críticos sectários”: “Nossa análise exigirá um bocado de coragem. Sentimentos poderão ser magoados”. Por isso, não façamos como alguns: “Os tolos correm (...) onde até os anjos têm medo de pisar.”


*A abordagem de Dennett é impressionante pela agudeza e extensão, tanto quanto o estímulo que pode nos dar – ao contrário do que alguns possam avaliar sobre um pensamento que, ao mesmo tempo que “não deixa pedra sobre pedra”, oferece um vigor, um gosto e uma perspectiva para a vida tão ou mais estimulantes que outras elucubrações, com as da religião tradicional ou formas derivadas (“tipo new age”). “Não seria uma vergonha perder a oportunidade de ver um credo mais forte, mais renovado, estabelecendo-se no lugar de um fé frágil, doentia, que você por engano supôs que não deveria ser perturbada?”, pergunta Dennett.

** “Diga-me por quê” (“Tell me why...”) se refere a uma canção antiga norte-americana que Dennet diz nutrir uma afeto, achando-a belíssima, lembrando-lhe dos acampamentos escolares na sua infância. Obviamente que a resposta (“Because God made...”) já não pode ser dita com naturalidade para quem, mesmo não correndo feito tolo, arrisca-se a encarar a existência sem se achar superior aos companheiros animais, plantas e, num todo, ao Planeta que habita, constitui e constitui-se. Abaixo, a letra em inglês da canção (está na página 17 de “A Perigosa Ideia...”):

Tell me why

Tell me why the stars do shine
Tell me why the ivy twines
Tell me why the sky's so blue
And then I'll tell you just why I love you

Because God made the stars to shine
Because God made the ivy twine
Because God made the sky's so blue
Because God made you, that's why I love you

***Na imagem acima, o quadro "A Encantadora de Serpentes", de 1907, do pintor francês Henri Rosseau. É a ilustração de capa do livro de Dennett na edição original (em inglês), como na brasileira.

Correspondência com o Ferdinando (leões e ursos)

Ferdinando,

Sempre mil coisas.

A reportagem (sensacional) sobre o comportamento dos leões, com fotos (sensacionais), está na (sensacional) revista Natinal Geographic Brasil. Li em papel, mas logo adiante segue o link para a versão no site deles. Tempos atrás, havia feito um comentário no grupelho Visão Científica, que, aproveito, colo junto:

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(...) Da NG Brasil vou destacar uma reportagem muito bacana (textos, gráficos, fotos de alta qualidade para os meus padrões), na edição de agosto de 2013, sobre leões que vivem no Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia.

Páginas 56/57:

“Os tigres são solitários. Idem para as onças-pardas. Leopardos não têm interesse em se associar com outros de sua espécie. O leão é o único felino social. Vive em coalizões cujos tamanho e dinâmica são definidos por um intricado equilíbrio de vantagens e desvantagens evolutivas. E por que o comportamento social, inexistente em outros felinos, adquiriu tanta importância para o leão? É uma adaptação necessária para a caça de presas de grande porte, como os gnus? Facilita a proteção dos filhotes pequenos? Surgiu das características circunstanciais das disputas por territórios? À medida que se delinearam os detalhes da sociabilidade leonina, sobretudo nos últimos 40 anos, muitas das revelações cruciais vieram de estudos realizados no Serengeti.”

E as perguntas acima não caberiam também para os humanos? Por que vivemos em grupo? Como as relações entre os indivíduos se dá – numa perspectiva zoológica também para o Homo sapiens contemporâneo, ou seja, que considere existir um longuíssimo processo evolutivo – processo quel alguns supõem termos escapados ou, mais radical ainda, estarmos alheios, como “imagem e semelhança” de um deus criador, que montou o mundo com tudo pronto (em uma semana) e nos deu tudo para dominarmos e usufruirmos para todo e sempre?

Há os que, não acreditando em criacionismo bíblico, acreditam numa independência total do ser humano das contingências biológicas, tendo nós superado totalmente outros seres do ecossistema planetário, caso dos nossos “primos” gorilas, chipanzés e bonobos. De alguma forma, “endeusam” o ser humano, mesmo que sejam “ateus de carteirinha” (ou “materialistas”), como denuncia Steven Pinker em seu livro “Tábula Rasa”.

Certo, mas voltemos à matéria da NG Brasil. Segue o link:

http://viajeaqui.abril.com.br/materias/leao-serengeti-tanzania-africa-felinos-sociais

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E o que falei sobre a morte de fêmeas pelos machos, está neste trecho da reportagem:

“São belos felinos, um quarteto de machos, com 8 anos de idade, descansando em uma atmosfera de camaradagem. Parecem intimidantes e presunçosos. É provável que sejam dois grupos de irmãos, explica Rosengren, todos nascidos com diferença de meses em 2004. Em 2008, haviam sido apelidados de ‘os Assassinos’ por outro pesquisador, com base na suposição de que mataram três fêmeas com coleiras de rádio, uma após outra, de modo bastante sistemático em uma área de drenagem a oeste do rio Seronera. Tal violência de machos contra fêmeas não é aberração completa – em algumas circunstâncias, talvez até seja um comportamento adaptativo dos machos, liberando espaço aos bandos que eles controlam graças à eliminação da competição sob a forma de fêmeas nas proximidades –, mas, naquele caso, a matança reforçou a reputação de crueldade dessa coalizão de machos.”

Num acaso tremendo (ou nem tão acaso assim, já que estamos sempre transitando pelos assuntos; lendo, conversando, trocando dicas etc), pois no sábado à noite (baita programa...), ao seguir na leitura de “Sozinho no Polo Norte: uma aventura na terra dos esquimós” (L&PM, 1997), do explorador brasileiro Thomaz Brandolin (detalhe singular: o livro é dedicado ao seu companheiro de jornada, o cão Bruno), atentei para o seguinte, entre outras “curiosidades” – vindas de quem se deparou de verdade com “os caras peludos”:

“Apesar de perigoso, o urso polar (Ursus maritimus) é um animal encantador, e é totalmente adaptado às condições polares. Considerado o maior animal carnívoro terrestre, o macho chega a mais de meia tonelada e atinge fácil três metros de comprimento (...). O leite que a mãe [ursa] amamenta seu filhote contém 47% de gordura (...) o da vaca contém apenas 3,5%. São aproximadamente 20 mil ursos [1996] vivendo na costa das regiões árticas. (...) A comida é tão escassa que o território de um urso, onde ele passa a sua vida, pode chegar a 200 mil quadrados – um Paraná inteiro.”

E agora o que interessa para o “caso”:

“Os machos, por serem maiores e mais fortes que as fêmeas, quando estão famintos não respeitam ninguém e chegam a matar uma fêmea ou um filhote para comer. Por isso, na época do acasalamento as fêmeas só cedem aos assédios do macho depois de terem certeza da intenção deles.”

Parece-nos, em nosso julgamento antropocêntrico, uma crueldade inominável, repugnante em alta escala. Mas relativizando, considerando a história evolutiva, da sua mentalidade, dos seu instintos atávicos, a situação não é absurda, muito menos “imoral”... Trata-se simplesmente da natureza dos ursos.

Obviamente, esses acontecimentos do “mundo animal”, mesmo que o sejamos também essencialmente, não “justificam” ou “embasam” de qualquer forma qualquer tortura e morte de mulheres por parte de humanos do sexo masculino frustrados, furiosos, com noções de honra calcadas no mais imbecil machismo.

Luke Skywalker & Charles Darwin

Em um artigo atualizado no final de 2009, o professor de bioquímica Sergio Pena traça uma comparação entre o personagem (ilustração) da saga Guerra nas Estrelas e o naturalista britânico, autor do fundamental “A Origem das Espécies”. Segue uns trechos selecionados e, no final, o link para uma leitura de todo ele.

“Em seu brilhante trabalho de mitologia comparativa, Joseph Campbell (1904-1987) verificou que os heróis de todas as culturas e religiões humanas compartilham um arco de vida similar, que ele chamou de “monomito”. No livro O herói de mil faces, ele descreve que, no processo de se transformar de humano em herói, o personagem universalmente passa por três estágios previsíveis: separação – iniciação – retorno. Isto é especialmente bem exemplificado na trajetória do herói Luke Skywalker em Guerra nas estrelas, pela simples razão de que a sua estória foi escrita por George Lucas estritamente seguindo as teorias de Campbell.”

“O arco de vida de Darwin acidentalmente seguiu de maneira fiel o script monomítico de Campbell. Separação: o jovem destinado a se tornar pároco na Inglaterra vitoriana e ter uma vida monótona abandona seu país para uma aventura de volta ao mundo no navio Beagle. Iniciação: na viagem de cinco anos (dos quais ele passou 2/3 do tempo em terra), Darwin vence várias agruras como constante enjoo no mar, perde a fé religiosa, descobre sua vocação de naturalista e coleta uma fantástica coleção de espécimes biológicos. Retorno: Darwin completa sua aventura no isolamento de sua mansão campestre e emerge como autor da Origem das espécies, um livro contendo ideias que deram novo sentido à biologia e modificaram radicalmente a visão que a humanidade tem de si própria e de seu lugar no universo. Certamente uma trajetória mitológica perfeita – não é de se surpreender que Darwin tenha se tornado um super-herói.”

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/deriva-genetica/darwin-o-super-heroi

Vegetarianos X Paleontologia

Há um tempo venho reformulando minhas concepções sobre a alimentação. “No bojo”, aliás, de outras “reformulações”, que me puseram a (re)ler velhos barbudos, como o Charles Darwin e a miríade de autores que desenvolveram a teoria da seleção natural e o evolucionismo – princípios a agirem na configuração da vida no planeta Terra, incluindo a nós, autodenominados Homo sapiens.

Pois algo que me chamou a atenção foi a tal “dieta pálio” ou paliodieta, que já comentei uma ou outra vez com vocês. Em que pese que possa ser mais um modismo dietético, acredito que, ao passar o “bum” de mais um “método infalível de emagrecimento” (mesmo que isso não seja o objetivo primeiro da proposta), vão ficar muitas coisas boas, caso da consideração efetiva da pesquisa histórica, antropológica, arqueológica e, até, zoológica sobre o ser e a sociedade humanas desde milhares ou milhões de anos, quando começamos a descer das árvores.

Para mim, um simpático ao vegetarianismo por razões éticas, especialmente (evitar o sofrimento de seres senscientes), é algo difícil de equacionar. Mas estou tentando fazer a minha própria “síntese”, combinando concepções vegetarianas (éticas, ecológicas, de compaixão e consideração a dor alheias dos animais não humanos) e, digamos, paleontológicas (aquilo que por milhares de anos o humano e seus antecessores biológicos de espécie comeram).

Vai o link, começando pela apresentação de um livro, “A Dieta dos Nossos Ancestrais”:

http://primalbrasil.com.br/a-dieta-dos-nossos-ancestrais/

*Uma passagem "paulada" de um artigo de Caio Fleury, autor do livro supracitado:

“Substituir alimentos de origem animal por alimentos nutricionalmente pobres demonstra falta de conhecimento básico sobre nutrição que é geralmente apresentada de maneira tendenciosa e cientificamente infundada. Apesar de seus motivos ideológicos que muitas vezes são nobres, estes indivíduos são infelizmente vítimas da ignorância, em grande parte incentivada pela tendência new age de sustentabilidade ambiental e direito dos animais, assim como a tendência dos padrões alimentares atuais, que vem aos poucos ocultando o pouco que nos resta de nossa sabedoria ancestral.”

FONTE: http://primalbrasil.com.br/porque-voce-deveria-comer-mais-carne-e-nao-ser-vegetariano/

**Na revista “Scientific American Brasil” de novembro passado (2013), saiu uma matéria muito interessante sobre a longevidade do humano em relação ao outros primatas – “Evolução – Longa vida aos humanos”. Existem ligações entre a dieta e a “formatação” do ser humano, inclusive o seu tempo de vida. Vou reproduzir diretamente a sequência de parágrafos que me chamaram a atenção em relação a alimentação, desenvolvimento do cérebro, resistência a doenças (p. 42):

(...) Os suecos do século 18 viviam lado a lado em grandes aldeias, vilas e cidades permanentes, onde estavam expostos a sérios riscos de saúde desconhecidos por pequenas comunidades de chimpanzés itinerantes [vivendo na selva]. Então, por que os suecos viviam mais tempo [conforme dados de 1751]? A resposta, ao que parece, pode estar na dieta de carne de seus ancestrais humanos primitivos e na evolução dos genes que os protegiam de muitos perigos dos carnívoros.

Os chimpanzés [nossos “primos”] passam a maior parte de suas horas de vigília em uma perseguição doce: catando figos e outros frutos maduros. Circulam por grandes territórios em busca de comida rica em frutose, usando apenas ocasionalmente o mesmo ninho duas noites seguidas. São especializados em caçar pequenos mamíferos, como o macoco Piliocolobus, mas não procuram deliberadamente essas presas nem consomem grandes quantidades de carne. Primatólogos estudando chimpanzés selvagens na Tanzânia calculam que a carne perfaz 5% ou menos da dieta anual dos símios de lá, enquanto a investigação em Uganda mostrar que a gordura animal representa apenas 2,5% de sua alimentação anual em peso seco.

Muito provavelmente, avalia Finch [pesquisador em genética], os primeiros membros da família humana consumiram dieta semelhante, baseada em plantas. No entanto, em algum momento, entre 3,4 milhões e 2,5 milhões de anos atrás, nossos ancestrais incorporaram uma nova e importante fonte de proteína animal. Conforme sítios na Etiópia mostram, começaram a retirar carne de restos de grandes mamíferos ungulados, como antílopes, com ferramentas simples de pedra, quebrando os ossos para chegar à medula rica em gordura, cortando tiras de carne e deixando para trás marcas de cortes reveladoras sobre fêmures e costelas. Há 1,8 milhão de anos, se não antes, os homens começaram a caçar ativamente animais de grande porte e trazer carcaças inteiras para seus acampamentos. A nova abundância de calorias e prorteínas provavelmente ajudou a impulsionar o crescimento do cérebro, mas também aumentou a exposição a infecções. Finsch sugere que esse risco favoreceu o surgimento e disseminação de adaptações que permitiram aos nosso antecessores sobreviver a ataques de patógenos e, assim, viver mais tempo.

(...)

Outra matéria interessante – “Alimentos e evolução humana – Mudança alimentar foi a força básica para sofisticação física e social” – também publicada no sítio da “Scientific American Brasil”. Segue o link abaixo. Mas, antes, já destaco um pequeno trecho:

“Nós somos vítimas de nosso próprio sucesso evolutivo, desenvolvendo uma dieta calórica concentrada, mas minimizando a quantidade de energia de manutenção despendida em atividade física. (...) O que é singular nos seres humanos é a extraordinária variedade do que comemos. Fomos capazes de prosperar em quase todos os ecossistemas sobre a Terra, consumindo desde alimentos de origem animal, entre as populações do Ártico, até, basicamente, tubérculos e cereais, entre as populações dos Andes.”

http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/alimentos_e_evolucao_humana.html

Adeus, berço esplêndido...

Outra heroína pop do meu panteão é a brasileira Suzana Herculano-Hoezel, apresentada pela querida Lela, minha colega de instituição. Suzana é neurocientista do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e tem se destacado como pesquisadora e divulgadora científica. Ela presta um serviço enorme na desmitificação do humano e suas fantasias autopromotoras, que somente alimenta a nossa situação patética no universo onde estamos imersos, tentando “nos achar” – em duplo sentido: localizarmo-nos no caos com nossas precárias ferramentas perceptivas/cognitivas – o que eu acho positivo, e – o que eu lamento às vezes – no sentido da soberba excessiva, nos colocando num “ápice da criação”, filhos diletos do Poderoso Chefão, portanto, “donos do campinho” (e da bola também), já com tudo encaminhado, felizes com nossos “faz de conta”.

Bem... falando sobre “a evolução do cérebro dos primatas”, Suzana, em artigo na revista Galileu (link abaixo), diz o seguinte, já na abertura do seu texto:

“O que nos torna especiais e nos distingue dos outros animais? Desde meados do século 19, quando a ciência passou a aceitar que a mente é fruto do funcionamento do cérebro, biólogos, psicólogos e neurocientistas se empenharam em encontrar maneiras de obter características distintivas do cérebro humano que justificassem nossa ‘superioridade’. Foi nessa mesma época que Darwin nos tirou do berço esplêndido [daí o título da postagem]. Se a diversidade animal na face da Terra é fruto da evolução a partir de um ancestral em comum, então nós, humanos, autoclassificados como ‘os que vêm primeiro’ (significado da palavra "primata"), somos feitos à imagem de... outros primatas. Mas, então, por que somos especiais?”

Atalhando o texto, a resposta da Suzana começa assim:

“Com 86 bilhões de neurônios, não 100, e sendo eles metade das células do cérebro, e não um décimo, mostramos que o cérebro humano é construído exatamente da maneira esperada para um cérebro ‘genérico’ de primata em um corpo de 70 kg - não maior ou com mais neurônios do que o esperado. (...) Ou seja: as regras da evolução do cérebro de primatas também se aplicam a nós, como deveriam. Se algo nos torna especial, é a combinação de sermos primatas (e não, por exemplo, roedores, o que nos permite concentrar um grande número de neurônios em um volume pequeno) e, dentre os primatas, os felizes portadores do maior cérebro - e, portanto, do maior número de neurônios.”

E eu mesmo me meto a concluir: Com isto (maior cérebro entre os primatas), temos mais conexões neurônicas, permitindo-nos uma capacidade enorme de adaptação, sobrevivência, expansão nos ambientes, criando estratégias e ferramentas impossíveis a outras espécies de vida animal conhecida. Mas há uma confusão entre tal “poder natural”, obtido no longuíssimo processo evolutivo planetário e da vida na Terra, e alguma “dádiva divina”. Sou o primeiro a reconhecer a maravilha da existência e a sensação empolgante de viver. Não por respeito em confiança em “Deus” ou ser transcendental, mas pela aventura, pela fortuna de poder se colocar como um explorador intelectual, com todo o corpo mergulhado no oceano da existência humana.

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI112400-17774,00-SOMOS+APENAS+GRANDES+PRIMATAS.html

29 de nov. de 2013

Ainda sobre escola

Pensando sobre ESCOLA em uma sequencia de comentários em um post de um amigos aqui no Face:

Eu concebo que a escola, muitas vezes, mata a vontade de saber; forçando o “saber”, produz o desgosto. Por sorte, muitos “recuperam” o “paladar” ou são menos afetados pelo ambiente opressivo de certos educandários (isto começa já pela frequência obrigatória, penalizável, a salas insalubres, onde se confina por horas, numa caixa apertada, sob carteiras apertadas, desde cedo da manhã [7h30min], uma gente cheia de vitalidade e hormônios em ebulição). Há alternativas, com ambientes mais abertos (em vários sentidos), como acontece, pelo que pude ver e fui informado, na educação básica da Finlândia ou nas alternativas como a Summerhill School, fugindo do medievalismo – que, de tão caquético, não funciona mais com as gerações contemporâneas (daí a choradeira de muitos catedráticos), mantendo-se somente por inércia institucional, por necessidades do status quo. Não digo isso sozinho, evidentemente. Apoio-me no que pude entender de pensadores ligados à educação, como o próprio Alexander Neill (Summerhill), em Ivan Illich, Paulo Freire, Ruben Alves e – não poderia faltar – Michel Foucault, entre vários outros.

E um já clichê quando pensamos em escolas é a canção (parte II) “Another Brick In The Wall”, lançada em 1979, da banda britânica Pink Floyd, fazendo parte do álbum conhecidíssimo “The Wall”; a composição é do baixista Roger Waters, constando vários elementos autobiográficos. O álbum foi adaptado no filme homônimo, também muito famoso, dirigido por Alan Parker.

Segue a letra e um link para a parte do filme onde a canção é “encenada”. (Lembro-me do impacto deste filme quando, nos anos 80, fui assisti-lo com amigos no Cinema Baltimore, em PoA, em minha época de estudante universitário, com inédita tela maior e som estéreo, aumentando ainda mais o impacto daquele “tijolo no muro”... )

Another Brick In The Wall (part II)

We don't need no education
We don't need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave them kids alone
Hey! Teacher! Leave them kids alone!
All in all, it's just another brick in the wall
All in all, you're just another brick in the wall

http://www.youtube.com/watch?v=xpxd3pZAVHI

Sim, escolas tão opressivas e massificadoras – como as que se retratam canção do Pink Floyd – nem mais se sustentariam. A própria legislação veda/veta (ECA, LDB, a própria Constituição) e as relações de autoridade (alunos x professores, pais x filhos etc.) modificaram-se muito por inúmeras razões. Mas como uma caricatura da situação, acho que serve, refletindo sobre os educandários (o jornalista da Superinteressante, Denis Russo, esses dia, aqui no auditório da Unisc, lembrou o quanto nosso modelo de escola é britânico, fordista).

Sobre a Finlândia, eu mesmo conheci no ano passado o professor Tapio Varis, da Universidade de Tampere, que palestrou e fez visitas em Santa Cruz (e outras universidades comunitárias do RS), abordando o sistema de ensino finlandês; também recentemente, tenho um colega de trabalho que voltou de um intercâmbio na Finlândia.

Pois é. Penso que o modelo escolar força certas metodologias. É muito difícil romper. Daí estudantes, pais, professores e técnicos nos educandário se verem enredados em imposições, “exigências”, cada qual cobrando performances uns do outros. Acho que pensar que “o problema” é “o aluno” é desconsiderar a complexidade da coisa toda e também o tamanho das modificações que precisaríamos fazer nas escolas para fugir da situação que, ao cabo, é alienante, tentando ser o contrário disto (mais ou menos como acontece com aquelas crianças do filme “A fita branca”, onde a rigidez cristã não produz crianças dóceis e sinceras, mas violentas e dissimuladas). De novo, não sou eu, “o iluminado”, “o rebelde” que está dizendo isso. Já citei vários pedagogos e tenho a minha trajetória (mesmo que errática) de professor desde o começo dos anos 90.

Mencionei que a noção de autoridade se alterou bastante. Assim, também, a de “respeito”. Sim, “não é como era antigamente”. Mesmo! Vai se diferindo a cada nova geração. Minha geração tinha um respeito com os professores já muito diferente da geração dos meus pais com os professores deles, e que, por sua vez, era diferente da do tempo da dos pais deles (meus avós) etc. Nem Papa, nem presidente (presidenta!) da república, nem para com a nobreza da Inglaterra têm os britânicos a mesma consideração “de antigamente”! E eu acho que está melhor assim, mais aberto, horizontal, mesmo que seja um tanto desconfortável pelas indefinições e descompassos entre mentalidades (das pessoas) e instituições (a burocracia estabelecida).

Não acho que haja “culpados” na escola. O que me parece haver é uma estrutura reacionária, conservadora – mas que, mesmo resistindo, vai se alterando, “entregando os pontos”.

“Para mim, a escola como meio de educação, era nula"

“Para mim, a escola como meio de educação, era nula. Durante toda a minha vida, fui singularmente incapaz de dominar qualquer língua. Prestava-se uma atenção especial à composição dos versos, o que nunca consegui fazer direito. Eu tinha muitos amigos e juntei uma coleção de versos antigos, os quais, devidamente emendados, às vezes com a ajuda de outros meninos, eu conseguia fazer com que servissem para qualquer assunto.”

Quem fala estas coisas é um dos grandes gênios da civilização, Charles Darwin, em sua autobiografia (Contraponto, 2000). Sobre seu período de bacharelado em Cambridge, sua avaliação também não é positiva: “meu tempo foi completamente desperdiçado, no que diz respeito a estudos acadêmicos, quanto em Edimburgo [estudando medicina] e na escola [na infância].”

Darwin talvez exagere ou faça uma caricatura, mas creio que ele estava querendo ressaltar que o mais importante eram as vivências, a rede de relações e o contato com outros assuntos de interesse particular não previstos e habilidades não valorizadas no currículo daqueles educandários que ele frequentou. “Nenhuma atividade em [meu tempo de] Cambridge foi praticada com tanto interesse ou me deu tanto prazer quanto colecionar besouros”, anotou. Podia parecer um “mero passatempo”, mas foi-lhe fundamental, por sorte não impedido por supostas “coisas mais relevantes”. Percebia o menosprezo: “era considerado por todos os professores e por meu pai um menino nada excepcional, abaixo do padrão intelectual médio”. Recebeu um pito do seu progenitor: “Você só dá importância à caça, aos cães e à captura de ratos, e será uma vergonha para si mesmo e para sua família”.

A grande “escola” de Darwin foram, aos 22 anos, os quase cinco anos no navio Beagle: “Nessa viagem, tive a primeira formação ou educação verdadeira de minha mente.” Sua resolução de trabalhar com afinco no registro do que observava e, por conta própria, estudar os assuntos, lhe fez o naturalista extraordinário, ao ponto de escrever uma das obras mais importante do mundo contemporâneo, “A origem das espécies”, essencial para entender a vida sem apelar a lendas, ao obscurantismo.

5 de nov. de 2013

A religião analisada por um zoólogo...


Segue-se uma citação um tanto longa – mas muito instigante (acho eu) – para se pensar a religião por um viés inusitado: um subproduto da estruturação biológica do Homo sapiens, “a única espécie animal de primata bípede do gênero Homo ainda viva”, na definição na Wikipédia.

Para apreciá-la, talvez se necessite “descer do pedestal da criação” e nos ver e post...ar enquanto mais um – embora singular em diversos aspectos – componente do planeta; um dos seus seres vivos, surgido num longuíssimo processo evolutivo, que nos trouxe até os dias de hoje em companhia com quase incontáveis de outras espécies de animais – afora todo o vastíssimo reino vegetal e de outros seres vivos, tais como fungos e bactérias.

Os parágrafos foram retirados do já mencionado livro “O Macaco Nu”, de Desmond Morris (edição da Círculo do Livro – tradução para o português de Hermano Neves, do original “The Naked Ape”, publicado em 1967).

Morris é zoólogo, nascido em 1928 na Inglaterra, com doutorado pela Universidade de Oxford e várias condecorações acadêmicas; autor de muitos livros sobre comportamento animal, onde se inclui, em especial, o ser humano, num escrutínio mais afeito à etologia (comportamento animal) e menos etnológico (culturas humanas). Morris é colocado como uma referência na sociobiologia, campo de estudos que venho desenvolvendo muitas simpatias, embora careça de mais conhecimentos (mal li obras de Edward Wilson, por exemplo).

Uma das coisas mais importante que acredito Morris tenha feito através de seus livros, estudos, documentários, palestras, enfim, sua existência intelectual criativa, foi sempre voltar a nos lembrar que

"Apesar das nossas ideias grandiosas e das nossas sublimes vaidades pessoais, continuamos a ser humildes animais, sujeitos a todas as leis básicas do comportamento animal."

Como está na apresentação da edição de onde retirei as citações,

o humano, como espécie, "não é dono e senhor da natureza, mas simplesmente um dos seus filhos".

"Tendemos a sofrer de uma estranha condescendência (...), convencidos de que somos entes especiais, acima de qualquer regulação biológica. Mas não é assim. Houve muitas espécies formidáveis que se extinguiram no passado, e não somos exceção. (...) temos de nos encarar demorada e friamente como exemplares biológicos e compreender alguma coisa sobre as nossas limitação [enquanto um ramo dos primatas sem cauda, os 'macacos pelados']."

Mas agora, sim, vai a citação sobre a religião. Está lá no capítulo V, “Agressão”, entre as páginas 155 e 159:

(...)

Já que falamos em religião, talvez valha a pena observar mais de perto essa estranha forma de comportamento animal, O assunto não é fácil, mas, como zoólogo, devemos fazer o possível para observar o que se passa na verdade, em vez de nos determos ouvindo o que deveria ter acontecido. Se o fizermos, teremos de forçosamente de concluir que, em sentido comportamental, as atividades religiosas consistem na reunião de grandes grupos de pessoas que executam longas e repetidas exibições de submissão, no intuito de apaziguar o indivíduo dominante. Esse indivíduo dominador assume muitas formas nos diferentes tipos de cultura, mas conserva sempre um fator comum: um poder enorme. Às vezes, assume a forma de um animal de outra espécie, ou uma versão maios ou menos idealizada. Outras vezes, é retratado como um membro sensato e idoso da nossa própria espécie. Pode ainda tomar um caráter mais abstrato e receber o nome de “o Estado”, ou outros equivalentes. As respostas submissas que lhe são oferecidas podem consistir em fechar os olhos, baixar a cabeça, por as mãos em atitude de súplica, ajoelhar, beijar o solo, ou mesmo chegar à prostração extrema, frequentemente acompanhada de vocalizações de lamento ou de cânticos. Se esses atos de submissão são bem sucedidos, o indivíduo dominante acalma-se. Como mantém enormes poderes, as cerimônias de apaziguamento têm de ser praticadas a intervalos regulares e frequentes, para impedir que o dominador volte a sentir-se irado. Em regra, mas nem sempre, o indivíduo dominando é chamada um “deus”.

Como nenhum desses deuses existe de numa forma corpórea, é o caso de se perguntar por que forma inventados. Para encontrar a resposta, temos de regressar às nossas origens ancestrais. Antes de nos termos tornados caçadores cooperantes, devemos ter vivido em grupos sociais semelhantes aos que ainda hoje se veem em outras espécies de macacos e símios. Nos casos típicos, cada grupo é dominado por um só macho. Este é ao mesmo tempo patrão e senhor todo-poderoso e cada membro do grupo tem de apaziguá-lo ou sofrer as consequências. O chefe é também o membro mais ativo na proteção do grupo contra os perigos exteriores e no ajuste de contendas entre os restantes membros. Durante do a vida, cada membro do grupo gira à volta do animal dominante. O seu papel de detentor do poder dá-lhe uma posição semelhante a de um deus. Voltando agora para os nossos antepassados mais próximos, torna-se evidente que, com o desenvolvimento do espírito cooperativo, tão fundamental para a caça em grupo, a aplicação da autoridade do indivíduo dominante teve de ser muito limitada, para conservar a lealdade ativa (e não passiva) dos restantes membros. Era preciso que estes últimos quisessem ajudar o chefe, em vez de se limitarem a teme-lo. Para isso, o chefe tinha de ser cada vez mais como “um dos outros”. O antigo macaco tirano teve de desaparecer, para ser substituído por um chefe macaco pelado, mais tolerante e cooperante. Tratava-se dum passo essencial para a organização de um novo tipo de “entreajuda”, mas criou um problema. O domínio total do membro número 1 do grupo foi substituído por um domínio qualificado, de forma que aquele não podia impor uma lealdade cega. Embora essa mudança tenha sido vital para o nosso sistema social, deixou, no entanto, uma lacuna. Devido aos nossos antecedentes, conservamos a necessidade de uma figura todo-poderosa que mantivesse o grupo sob um certo ‘controle’, e a vaga foi preenchida com a invenção de um deus. Dessa forma, a influência da figura-deus inventada podia funcionar como uma força complementar da influência progressivamente decrescente do chefe do grupo.

À primeira vista, surpreende como a religião tem tido tanto sucesso, mas o seu enorme apenas nos dá apenas a medida da força da nossa tendência biológica fundamental, herdada diretamente dos macacos e símios nossos antepassados, para nos submetermos a um membro do grupo dominador e todo-poderoso. Por esse motivo, a religião tem-se revelado extremamente valiosa como mecanismo de coesão social, e é mesmo possível que a nossa espécie não tivesse progredido tanto sem ela, dado o conjunto especial das circunstâncias que acompanharam a nossa evolução. A religião conduziu a diversos subprodutos bizarros, tal como a crença numa “outra vida”, em que encontraríamos, finalmente, as figuras-deuses. Pelas razões já mencionadas, os deuses eram inevitavelmente impedidos de nos aparecerem na vida atual, mas essa falta podia ser corrigida depois da vida. Para facilitar as coisas, desenvolveram-se as práticas mais estranhas em relação ao destino dos nossos corpos quando morremos. Se vamos finalmente encontrar os nossos senhores dominantes e todo-poderosos, devemos ir bem preparados para o acontecimento, o que justifica todos os requintes das cerimônias fúnebres.

A religião também originou muito sofrimento e miséria desnecessários, sempre que se formalizou exageradamente a sua aplicação e sempre que os “assistentes” profissionais das figuras-deuses não resistiram à tentação de lhes pedir emprestado um bocadinho do poder divino, para usar em proveito próprio. Contudo, apesar de a história da religião ser muito confusa, trata-se de um aspecto da nossa vida social sem o qual não podemos passar. Sempre que se torna inaceitável, é rejeitada, de maneira calma ou violenta, mas surge imediatamente sob nova forma, talvez cuidadosamente mascarada, mas contendo todos os antigos elementos básicos. Muito simplesmente, precisamos “acreditar em alguma coisa”. Só nos mantemos unidos e controlados se temos uma crença comum. Nesse sentido, poderia afirmar-se que qualquer crença serve, desde que seja suficientemente poderosa; mas isso não é exatamente verdadeiro. A crença tem de ser impressionante e tem de ser visivelmente impressionante. A nossa natureza comum exige a execução e a participação em rituais de grupo requintados. Se se eliminam a “pompa e circunstância”, deixa-se uma terrível lacuna cultural e a doutrinação não atingirá o profundo nível emocional que lhe é indispensável. Acontece ainda que certos tipos de crença são mais prejudiciais e estupidificantes do que outros, podendo mesmo desviar uma comunidade para tipos de comportamentos rígidos que impeçam o respectivo desenvolvimento qualitativo. Como espécies, somos um animal predominantemente inteligente e explorador, e todas as crenças baseadas nesse fato são extremamente benéficas. A crença na validade da aquisição de conhecimentos e da compreensão científica [não confundir com verdadeira, única, permanente] do mundo em que vivemos, da criação e apreciação dos fenômenos estéticos em todas as suas formas e do alargamento e aprofundamento do campo das nossas experiências da vida cotidiana vai se tornando rapidamente a “religião” do nosso tempo. A experimentação e a compreensão são as nossas figuras-deuses bastante abstratas, cuja ira será desencadeada pela ignorância e pela estupidez. As nossas escolas e universidades são centros de treino religioso e as nossa bibliotecas, museus, galerias de arte, teatros, salas de concerto e estádios esportivos são locais de culto comum. Em casa praticamos o culto com nossos livros, jornais, revistas, rádios e televisões. De certa maneira, continuamos a acreditar no pós-vida, visto que uma parte da recompensa obtida com nossos trabalhos criadores é exatamente o sentido de que continuaremos, através deles, a “viver” depois de mortos. Como todas as religiões, essa também tem os seus perigos, mas se, como parece, necessitamos de ter uma religião, a nossa parece a mais adequada às qualidades biológicas particulares à nossa espécie. A adoção dessa religião por uma maioria crescente da população do mundo pode ser uma compensadora e tranquilizadora fonte de otimismo que se opõe ao pessimismo expresso anteriormente, a propósito do nosso futuro imediato e da sobrevivência da espécie.

*Sim, muito a ver com Dawkins, que além de darwinista e militante pela análise da religião de forma objetiva e não supervalorativa, tem livros excelentes de divulgação científica. Um cara importante nesse “mundo assombrado pelos demônios”, como diria o saudoso Carl Sagan, com tantas crendices e fórmulas escapistas, acabando por limitar ainda mais a mente humana, supostamente na tentativa de “expandi-la para o além”.

**E num outro comentário que estou lendo, já faz um tempo, coisas do filósofo Daniel Dennett. E está aqui na pilha, entre os primeiros, o seu livro “Quebrando o Encanto – A Religião como Fenômeno Natural”.Conforme diz na resenha, Denett quer "discutir a crença humana nas religiões a partir de uma questão fundamental: por que o homem crê na existência de seres superiores e lhes confere o estatuto de divindade?" E embora ele use conceitos "transbiológicos" como “memes” (Dawkins difundiu a ideia), afirma que "esse comportamento [da crença religiosa] pode ser explicado a partir do processo de evolução e seleção natural". O "quebrar o encanto" tem a ver com algo que pode ser lastimado: a perda do estado de beatitude, de êxtase e confiança que se sente a partir da adesão à fé, e, por outro lado, a “quebra” do domínio que se pode exercer ao oferecer (via igrejas de todos os naipes) tal "droga mental" às pessoas. Enfim, resumindo, não é fácil largar da cachaça! Hehe!!

***As análise de caras como o Dennett valem para todas as “linhas” religiosas. Me considero agnóstico. Mas além do gosto antropológico por todas as manifestações humanas, me inclino, hoje, para o panteísmo eisteneano, a “religiosidade cósmica” que ele falava (e que muitos fazem interpretações completamente descabidas), nada a ver com figurações antropomórficas “tipo Deus” ou deuses ou forças ou espíritos etc. Cada uma na sua, mas sem poupar crítica em nome do respeito a religião, ao “sagrado”; deveria ser objeto de análises como qualquer outro tema: política, cinema, dietética etc.

Conta comigo


Esses dias alguém mencionou saudosamente “um filme da Sessão da Tarde” chamado “Conta Comigo”. Até hoje não o vi (está naquela lista “quero ver”, que só faz crescer), mas li o conto (ou será novela pelo tamanho do texto?) “O Corpo” (“Outono da Inocência”), que está no livro “As Quatro Estações” (cada parte faz referência a uma estação do ano), do Stephen King, servindo de base ao filme. Aliás, são quatro histórias muito boas e muito bem contadas, ao menos na minha avaliação de leitor mediano e promíscuo. Muitos torcem o nariz para King, mas há coisas dele geniais – ou ao menos muito atraentes em termos de literatura de ficção (outro caso de uma “baita” livro dele, mais recente, que li no ano passado, é “Love - A História de Lisey”, além do “O Iluminado”, romance-cult, que também “virou filme-cult”, assim como muitos outros do SK).

De uma resenha do livro, copio o seguinte: “Em Quatro Estações, King, o mestre do terror americano, se distancia do sobrenatural e mergulha no dia-a-dia de personagens comuns, comprovando mais uma vez seu talento como um dos melhores ficcionistas da literatura contemporânea.”

Segue um link para a Editora Objetiva, que publica King no Brasil:

http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=553

Deus & Darwin...


Sim, é exagero – ou “dramatização” – e até uma injustiça dizer que Charles Darwin teria “assassinado Deus” ou coisa que o valha.

Na sua autobiografia, escrita em 1876 (publicada em português pela ed. Contraponto, 2000, com notas do seu próprio filho, Francis Darwin), o naturalista diz (pouco tempo antes de morrer):...

“Considerando a fúria com que tenho sido atacado pelos ortodoxos, parece ridículo que um dia eu tenha pretendido ser pastor. Essa intenção, assim como o desejo de meu pai nunca foram formalmente abandonados. Morreram de morte natural quando, ao sair de Cambrige [a universidade], embarquei no Beagle como naturalista.”

Na contracapa desta autobiografia, destaca-se o seguinte:

“Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável (…). Nesse período, entretanto, percebi pouco a pouco que o Velho Testamento (…) não merecia mais confiança do que livros sagrados dos hindus ou as crenças de qualquer bárbaro. (...) Fui tomado lentamente pela descrença, que acabou sendo completa. A lentidão foi tamanha que não senti nenhuma aflição, e desde então nunca duvidei de que minha conclusão foi correta. Aliás, mal consigo entender como alguém possa desejar que o cristianismo seja verdadeiro.”

Sobre a expressão “Deus”: Também se pode dizer que se trata de uma palavra que usamos para designar aquilo que está afastado da nossa possibilidade cognitiva, de nossa capacidade de compreensão e explicação, derivada da conformação e funcionamento de nosso cérebro, produto evolutivo, assim como são os cérebros de outros primatas e tantos outros animais. Eu prefiro ser mais direto e menos “misterioso”, dando espaço a cultuações mais limitadoras do que simplesmente admitir os nossos limites biológicos, psíquicos, perceptivos. Sempre me pergunto: Para que serve a afirmação de que Deus existe? Muitas vezes, é para nos dar falsas esperanças e, para alguns, dominarem uma massa imbecilizada, carentes de certezas e felicidade de viver. Assim, “Deus” poderia ser chamado também de “Aquilo que Ignoramos” ao invés de um “Ser Supremo”. Quem pode saber o que há na escuridão enorme que nos rodeia há palmos de nossas mentes? Deus pode, mesmo, não passar de mais uma ilusão, ou, como disse Dawkins, um delírio...