25 de abr. de 2013

Sobre datas e feriados locais: Venâncio e Santa Cruz

Na polêmica sobre a alteração do feriado em Venâncio de 11 de maio, dia do município, que marca a sua emancipação, para o 25 de julho, chamado dia do colono (imigrante alemão) e motorista (São Cristóvão, o santo católico), fiz comentário dentro de postagens no Facebook. Reproduzo-as abaixo.

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Compreendo as intensões comerciais-econômicas da proposta, mas tenho discordâncias. Há um simbolismo muito grande num feriado municipal, assim como deveria haver no 7 de setembro (nacional) e no 20 de julho (estadual), ou mesmo no 25 de dezembro. Alguém cogitaria modificá-los por uma forte alegação econômica? Essa proposta de alteração é mais uma indicação da “comercialização” das nossas vidas, não bastasse o consumismo induzido até por datas que estariam marcando o nascimento e/ou ressureição do mestre do desapego, da frugalidade, que vergou o chicote nas bancas dos vendilhões do templo.

Como falei, o 25 de julho acaba por ser uma data “étnica”, porque se refere ao primeiro assentamento germânico em São Leopoldo (e não em Venâncio ou Santa Cruz). Então, não é exatamente dia do colono no sentido de produtor rural, mas de uma etnia que trabalhou/trabalha na agricultura. Ocorre que antes, durante e depois dos alemães tivemos e temos outros grupos trabalhando na terra – índios, lusos, negros, italianos, poloneses etc. O Dia do Trabalhador Rural, no RS, é oficialmente em 14 de julho, morte do economista e político gaúcho Fernando Ferrari, muito ligado às questões da agricultura e pecuária em seu tempo. O 25 de julho, assim, é injusto se quisermos argumentar que é uma homenagem a todos que fazem da terra seu sustendo e modo de desenvolvimento do município. Vários grupos de agricultores estariam fora.

Outro problema é a alegação de vínculo da data com santos, caso do São Cristóvão. Afora a desconsideração de que todo ato público deveria se guiar, direta ou indiretamente, pela laicidade e respeito até pelos não-crentes, não se pode esquecer que santos são exclusividade de uma só igreja por aqui, a dos católicos. Tratam-se de abusos de uma “maioria” sobre uma “minoria”, naturalizada desde os tempos em que o Brasil era um império submetido ao Vaticano – algo que não foi vencido, mesmo após quase 124 anos da proclamação da república.

Enfim, há modos de se contornar e evitar o que eu acho mais uma perversão. Afinal, um município não se afirma só por alguma questão economicista, mas por considerar a sua história e a complexidade das identidades e das vidas dos seus cidadãos/ãs.

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Aqui em Santa Cruz é 25 de julho o feriado municipal, “Dia do Colono”, mas a referência não é o “qualquer colono”, mas o “colono alemão”, já que a data liga-se a imigração germânica, iniciada no Estado (Província) com o assentamento em São Leopoldo no ano de 1824. Ou seja, não ser refere ao início da colonização aqui no município (em 1849) e acaba sendo uma marcação étnica que privilegia um grupo em detrimento a outros que compõe Santa Cruz antes mesmo da introdução dos primeiros colonos europeus (não só “alemães”, já que vieram austríacos, poloneses, holandeses, belgas etc). Aqui, originalmente, tínhamos o Faxinal do João Faria, em referência ao sesmeiro João faria Rosa, que fundou o povoado (mantendo sua parentela, agregados e escravos, além da presença de índios, caboclos, quilombolas); o Faxinal veio a dar em Santa Cruz, e a data 25 de julho “encobre” essa formação étnico-racial múltipla, miscigenada, híbrida, deturpando a história em nome de uma etnicidade única.


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Complementando, seguem três textos antigos, que saíram na imprensa de Santa Cruz lá por 2003, onde busquei trazer alguma reflexões sobre datas e feriados locais.


Reflexões sobre a data 25 de julho

Por que a “data máxima” de Santa Cruz do Sul é 25 de julho, com “direito” a feriado municipal? Tal dia não é uma referência à emancipação, quando a Colônia de Santa Cruz tornou-se um distrito de Rio Pardo (1872). Ou, ainda, a instalação do município, ocorrida em 28 de setembro de 1878, tendo como primeiro presidente da Câmara de Vereadores – órgão esse que à época administrava o município – Joaquim José de Brito. Nem, ao menos, é 19 de dezembro, data indicada como início (1849) da ocupação dos lotes coloniais na Picada do Abel, hoje conhecida como Linha Santa Cruz.

Na verdade, 25 de julho faz menção à chegada dos primeiros imigrantes de origem germânica a São Leopoldo! E por que isso? Ora, mais uma vez, podemos concluir, estamos diante de outro elemento simbólico a reforçar a idéia de que o município é produto exclusivo da “genética” operosidade alemã.

Essa parcialidade corrobora na manutenção de uma visão histórica limitada, que menospreza as diversas e abundantes contribuições de personalidades e grupos vinculados a diversas etnias e procedências geográficas na construção da sociedade santa-cruzense. Ao ater-se a uma consideração superlativa da colonização alemã na região, fica dificultada a superação do que o professor Mário Maestri chama de “narrativas vitimárias e prometéicas” que fetichizam a história, e que, por sua vez, produzem uma compreensão histórica mistificada, baseada em mitologias.

Portanto, a “oficialidade” em nível municipal do 25 de julho se soma ao hino, a monumentos, ao brasão, enfim, a vários símbolos que deveriam representar toda a comunidade, mas que acabam por marcar e legitimar uma compreensão “teutocêntrica”, irreal, simplista e descomprometida com a abertura à pluralidade racial e cultural que caracterizou – e cada vez mais caracteriza – a construção de Santa Cruz do Sul.


126 anos de um município multicultural

Parabéns ao Riovale Jornal, e demais promotores e apoiadores, pela iniciativa de marcar os 126 anos de emancipação política de Santa Cruz do Sul com esta segunda edição do concurso – de redação e desenhos – envolvendo crianças e adolescentes do município. É uma excelente oportunidade de refletir sobre a história local, tão carente de estudos e sistematizações que revejam, em minha opinião, uma versão bastante parcial e, assim, cheia de possibilidades de más interpretações, em especial por alunos ainda em formação escolar básica.

Devemos reconhecer que o 28 de setembro não é a “data máxima” santa-cruzense. Não é um feriado municipal e pouca gente sabe – até mesmo professores de História – da relevância do ocorrido em 1878. O “25 de julho”, Dia do Colono, festejado em meio a um recesso oficial, acaba tendo uma consideração muito maior. Embora a inegável importância e justeza da lembrança, tal data, que se refere à introdução de imigrantes germânicos em São Leopoldo (nem mesmo é o dia da chegada dos primeiros teutos ao então Faxinal do João de Faria – povoado que deu origem à cidade de Santa Cruz – em 19 de dezembro de 1849), é, primeiro, uma homenagem a um grupo étnico determinado, antes do que uma comemoração histórica acerca de Santa Cruz em sentido amplo, englobando não somente o período de colonização, mas, antes também, o do povoamento, que se dá em data anterior a 1822 (portanto, cerca de três décadas antes do início dos assentamentos agrícolas com imigrantes germânicos na região de Santa Cruz), e cuja figura central é a do sesmeiro já mencionado na denominação da localidade, ou seja, João de Faria Rosa.

Conforme João Bittencourt de Menezes, um dos pioneiros da historiografia santa-cruzense, autor do livro Município de Santa Cruz, escrito em 1911 e publicado em 1914, este Rosa era de nacionalidade portuguesa, residindo no Faxinal em um sobrado de madeira, coberto com telhas de barro, nas imediações onde hoje está a Catedral da Igreja Católica. “Para resguardar-se das investidas dos bugres [indígenas], então muito abundantes, fizera cercar a sua morada pelos ranchos de seus numerosos escravos [negros]”, completa Menezes. A oficialização da doação da área a João de Faria Rosa (“algumas sesmarias de campos e matas”) pelo governo colonial português ocorreu pouco antes da proclamação da independência do Brasil.

Enfim, valorizar o 28 de setembro é mais uma possibilidade de trazer à nossa memória as abundantes contribuições de personalidades e grupos vinculados a diversas etnias, a diversas procedências geográficas e referências culturais na complexa construção da sociedade santa-cruzense. Um outro exemplo: o primeiro presidente da então instalada Câmara de Vereadores – órgão este que, na época, administrava o município, caracterizando o início da emancipação política da comunidade –, Joaquim José de Brito. Um nome que revela em sua lusitanidade tão evidente a importância de considerarmos “pra valer” a pluralidade de origens étnicas na formação e identidade do povo de Santa Cruz do Sul desde os seus primórdios.


Colonos e colonas de todas as etnias, parabéns a vocês!

Já comentei em outras oportunidades sobre o 25 de julho, "Dia do Colono", que, na verdade, em minha opinião, pode ser dito, com uma certa dose de picardia e constatação prática, o "Dia do Alemão", a data máxima, com direito a feriado, em municípios como Santa Cruz do Sul, suplantando, inclusive, o 28 de setembro, data da emancipação política santa-cruzense. Em Venâncio Aires, por exemplo, a “coisa” não chegou a este ponto, mantendo-se o 11 de maio como a comemoração “de fechar o comércio”.

Mas nem vou "implicar" muito com isso. Vai só uma questão: No tal "dia do colono", quem se lembra, por exemplo, que os verdadeiros primeiros agricultores da região, os primeiros colonizadores (evidente que numa outra concepção de ocupação territorial), plantadores e beneficiadores do fumo (e também do milho, mandioca, batata-doce, feijão, vários tipos de abóboras, amendoim e outros produtos por eles desenvolvidos, e que até hoje sustentam os trabalhadores rurais e empresas beneficiadoras), foram, conforme atestam os estudos em vários sítios arqueológicos, os índios, com destaque aos Guarani (tradição tupiguarani, os autóctones típicos da floresta subtropical, conforme nos apresenta o Prof. Dr. Pedro Mentz Ribeiro), que ocuparam o território do Vale do Rio Pardo mais ou menos pela época da "descoberta" do Brasil?

Pois é. Ninguém faz sequer uma leve referência a isso. Todas as homenagens são dirigidas ao imigrante "alemão" (ou, no "máximo", "italiano") e seus descendentes, os únicos que parecem merecer do título de "agricultores" – quando, também é sabido, vários imigrantes tinham pouco ou nenhuma experiência com o cultivo da terra, mesmo assim recebendo subsídios governamentais nas colônias oficiais, caso de Santa Cruz e Monte Alverne. Frise-se que, na época, o dinheiro do Estado vinha basicamente do trabalho escravo, que fazia literalmente tudo, enquanto a elite lusa "pura", “branca”, mandava e desmandava encastelada na totalitária administração pública. Ou seja, em síntese: o esforço brutal dos negros escravizados financiou a ascensão social do emigrante europeu no século XIX!

E já que mencionei afros, no "dia do colono" também se esquece do agricultor negro, que, de novo, em Santa Cruz, já trabalhava pelo menos desde o século XVIII nas propriedades rurais dos sesmeiros, como a de João de Faria Rosa, local onde hoje se assenta a cidade, bairros e partes do interior santa-cruzense. E sem contar os vários quilombos em meio às matas, nos grotões do ainda ermo, na época, Vale do Rio Pardo, onde os "fugidos" subsistiam pelo trabalho agrícola. Pergunto: Quem viu pelo menos uma pequena foto de canto com um afro-descendente (podia ser, mesmo, um “agregado", este pseudo-proletário, a um passo da servidão...) capinando ou arando o solo na profusão de anúncios em homenagem ao agricultor nas edições especiais dos jornais da nossa região?

Também poderíamos nos alongar no assunto, perguntando: Onde estão as mulheres neste “tributos” na imprensa e outros meios? Nem mesmo as “fridas” costumam aparecer – quando se sabe que o trabalho delas foi imprescindível e até, quase sempre, mais estafante e fundamental do que o dos homens.

Bem, essas coisas não são ditas para menosprezar o colono imigrante que veio da Europa. Essas coisas são ditas no intuito de colaborar numa reflexão que amplifique a consideração do importante trabalho que os trabalhadores e trabalhadoras rurais desempenharam e desempenham na região, incorporando às homenagens outros grupos étnicos historicamente discriminados. Construiremos assim, acredito eu, uma sociedade de fato mais igualitária.


*O dia 20 de novembro, marcado pela morte de Zumbi dos Palmares, não é o “dia do negro”, e sim da “consciência negra”, funcionando como uma compensação e reforço para os séculos de exploração econômica e discriminação social hediondas sofridas pela população afro-descendente brasileira.

*O “Dia do Trabalhador Rural” no RS é oficialmente comemorado em 14 de julho – data que se refere à morte, em 1962, do economista e político gaúcho Fernando Ferrari.

*Na edição especial do jornal Gazeta do Sul em homenagem ao Dia do Colono e Motorista, saída em 25 de julho de 2003, na capa, onde há uma foto de dois agricultores no trabalho de aragem da terra, ao se referir aos 179 anos da imigração alemã no RS e 154 em Santa Cruz do Sul, é dito assim: “Os colonizadores, que começaram a desembarcar em São Leopoldo em julho de 1824, rumaram para a região central 25 anos depois. Com seu trabalho, construíram em Santa Cruz uma das economias mais próspera do Estado.” Mesmo “dando um desconto” pelo tom apologético característico da circunstância festiva, ao ressaltar – e talvez, em certos momentos, extrapolar ou, até, exagerar – o papel dos “alemães” no desenvolvimento local e estadual, resvala-se para uma espécie de culto monoétnico. Isso porque não há referência alguma a um contexto histórico maior e mais complexo onde se insere a colonização da região e do Estado, “esquecendo” ou menosprezando a participação de personalidades e grupos étnicos não-germânicos no projeto, na viabilização, na execução, enfim, na real constituição e dinâmica histórica da colonização no Vale do Rio Pardo e no Rio Grande do Sul. Além de não enxergar inúmeros problemas que perduram: o tremendo ecocídio provocado pela colonização, a submissão econômica dos colonos a um modelo agrícola superexplorador dominado por pouquíssimas empresas transnacionais etc.